JOSÉ MARCELINO DA SILVA VAI ÀS AULAS DA PROFESSSORA JUBILINA CAVALCANTI ATHAÍDE DOS SANTOS NETA
(Excerto do livro de publicação independente — ISBN 978-65-992287-4-2 — MINHA CASA OCIDENTAL — RELATO VERDADEIRO SOBRE A MORTE DO FACÍNORA, composto de XXXIV capítulos e 988 páginas, de autoria de CISINO COSTA).
Petrolina, Pernambuco, início de 1964 da E.C.
— Jubilina, jega velha! Jubilina, jega velha! Jubilina, jega velha!
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Era esse o refrão da injusta, e nada lisonjeira, cantilena composta por alguns alunos da escola primária do Náutico Esporte Clube de Petrolina, em “homenagem” à professora Jubilina Cavalcanti Athaíde dos Santos Neta. Tratava-se de emérita docente do abecedário-ABC das primeiras letras, da cartilha, da tabuada e do primeiro ano do primário da citada escola (tudo junto). Invulgar figura humana, cuja memória José Marcelino da Silva venerava e se declarava completamente tributário a não mais poder, a exemplo do que ocorria também com a professora Dorinha, a adorável irmã dela, igualmente docente na mesma escola municipal.
Ela não merecia o adjetivo depreciativo sob qualquer aspecto. Nem mesmo era velha à época. Hoje é que já é, ou melhor, já foi, porque morreu, uma vez que ninguém fica para semente. Morreu e virou nome de rua, no bairro Quati II, na estrada que vai para o Piauí. O clamor da vingança dos alunos, muito possivelmente, decorria da acentuada mania que ela tinha de ministrar pancadas com réguas nos ombros das crianças, e, eventualmente na cabeça, no curso das aulas. Se existisse regulamento escolar para aplicação de reguadas nos alunos, com certeza a Professora Jubilina teria cometido muitas faltas no decorrer da atividade do magistério e seria passível até de sofrer penalidade, tendo em vista a severidade no trato. No entanto, ela tinha orgulho de dizer que nunca usava a palmatória. Era verdade. Palmatória, não! Régua, sempre!
Ela era exigente no exercício da docência. Tinha que ter aprendizado, treinamento, fazer o que a professora mandava, preparar o dever de casa, assiduidade nas aulas, aprender os bons modos de gente, agir com bom comportamento. Afinal, o que a professora queria a não ser a perfeita identificação das letras no abecedário, respostas certas em matemática, boa imitação dos sinais nos cadernos de caligrafia, disciplina na hora das aulas e modos de gente direita? Era pedir muito, essas coisas necessárias da vida, a quem se oferecia em troca um futuro melhor?
A professora Jubilina Cavalcanti Athaíde dos Santos Neta, foi o primeiro contato de José Marcelino da Silva com o símbolo da educação naquele início dos anos 60. A primeira vez que ele a viu, toda digna e bem-vestida com blusa de popelina bem engomada (usava até óculos, e relógio da marca Lanco, série especial, com 25 rubis), sumariava, no seu apequenado entendimento de onze anos, o que existia de melhor na condição social humana. Clamava, com sua presença branca, por respeito e exalava autoridade, nobreza e admiração. Limpeza, beleza e riqueza. A tarefa desenvolvida por ela naquele dia em que ele a viu pela primeira vez também era das mais nobres. Estava em busca de alunos para fundar a escola primária do Náutico Esporte Clube, na Rua Júlio de Melo, contígua à Avenida Guararapes, a ser inaugurada e bancada pela prefeitura municipal, sob a gestão do prefeito Luís Juliano Fernandes. Como interessada que era em ministrar o magistério, ia de casa em casa tentando convencer os resistentes pais a matricularem seus filhos na escola, que iria funcionar nas dependências do clube, um simples galpão com título garboso, ostentando um escudo com as cores da agremiação esportiva. A escola estava em formação (apenas uma sala, um quadro-negro e nada mais, nem cadeiras tinha), e, assim, ela não se esquecia de alertar para os pais que era necessário que o aluno levasse a sua própria cadeira, sem o que não poderia estudar. A cadeira pequenina de José Marcelino da Silva, dada pelo pai, era daquelas que abria e virava cadeira, fechava e ela fica empertigada, pronta para melhor acomodação ou transporte debaixo do braço.
Quando José Marcelino da Silva, já adulto, fazia uma retrospectiva penetrando nos confins do passado. Quando se transportava em imaginação e via a si próprio, surpreendendo-se sempre com a vivacidade da lembrança, apesar de tanto tempo decorrido (parecia até que foi ontem, tudo passou com muita rapidez!), constatava-se bem franzino. Quase esquelético, com cabelos ruivos e pelos de lobinho branco cobrindo os braços e as pernas, assistindo, pelo rádio, à novela “O Direito de Nascer” e se emocionando com o beijo que Albertinho Limonta deu em Isabel Cristina, pelas costas de Dom Rafael. Usava calção, camisa de algodãozinho e sandália japonesa nos pés, com correia quebrada, mas segura por um prego de viagem fixado transversalmente. Corria atrás da professora Jubilina para dizer que o pai dele queria também lhe matricular. Isto, após vencer o preconceito dele, pois este dizia que quem estudava desde cedo ficava doido, mas ele, José Marcelino da Silva, já tinha oito anos à época. Na verdade, o pai, coitado, queria mesmo era não arcar com mais despesas com a educação que ele não entendia, uma vez que era analfabeto.
José Marcelino da Silva começou a estudar e tomou gosto pela leitura. Alguns anos depois, grande parte da vida passava homiziado na biblioteca municipal, contemplando o maravilhoso mundo dos livros que insinuava se descortinar na sua frente. A biblioteca municipal de Petrolina fora instalada em um prédio onde funcionou a antiga estação geradora de energia elétrica a motor. No dia da inauguração, o prefeito da cidade, Dr. Luís Juliano Fernandes, disse, em seu discurso, uma frase que, no entendimento futuro de José Marcelino da Silva, era uma joia rara, “lapidar e excepcional, somente permitida às inteligências superiores”. O prefeito dissera apenas o seguinte, suficiente para o rasgado elogio posterior: “Assim, a casa que antes havia iluminado a cidade, passa agora a trazer luz às inteligências”.
Existe melhor começo de vida para alguém? A biblioteca era o seu estuário seguro, quase um santuário. O relicário era constituído pelos milhares de livros do acervo diversificado, expostos em seções nas estantes que formavam corredores desbraváveis a partir de um imenso salão composto pelas mesas de leitura e reflexão. Vãos instigantes, mágicos, e de impossível decifração, mas perfeitos para permitir viagens no tempo passado e conversas entre vivos e mortos, através de milhares de encadernações, cada uma delas, tão diversificada quanto o assunto tratado. O prédio ficava quase na frente da igreja matriz. Era moderno, de arquitetura retilínea, aconchegante e indutor de respeito — ele havia encontrado ali a sua Oxford armazenada em pilhas de livros. Poderia dizer, parafraseando Geoffrey Chaucey em Contos da Cantuária, que, no local, se encontrava o seu exemplar do Almagesto de Ptolomeu, um astrolábio e suas “pedras de auguim” para contagens e cálculos. Tinha uma bibliotecária, chamada Cida, filha de Dr. Pacífico da Luz e irmã de padre Bernardino, que dirigia um carro bege (fusca). A suave presença dela, aparente tranquilidade e olhar — olhos pretos, pacatos e sonhadores, que às vezes quase flertavam com a desilusão — introspectivo e melancólico de leitora contumaz de cabeça baixa, eram por si só um convite à reflexão e ao exercício do egoísmo do estudo silencioso. Relata-se uma pessoa leve, abstraída, pensando em coisas impalpáveis e lidando com a matéria etérea dos sonhos. Podia ser que ela apenas quebrasse a cabeça, em silêncio, procurando intensamente uma saída qualquer. Foi lá aonde ele experimentou, continuadamente, os seus raros momentos de felicidade íntima e primaveril, lendo centenas de títulos dos quais se achava proprietário absoluto. Os livros de Júlio Verne (20.000 léguas submarinas, A Volta ao Mundo em 80 dias, A Ilha Misteriosa, Viagem ao Centro da Terra, Da Terra à Lua). De Alexandre Dumas (Os Três Mosqueteiros, Homem da Máscara de Ferro, O Conde de Monte Cristo). De Victor Hugo (O Corcunda de Notre Dame). De Hergé, este, criador do personagem Tintim e autor de dezenas de outros obras, especialmente — ele se lembrava bem — Tintim no Tibet. Esvaziava uma estante, após selecionar e ler as obras escolhidas, e depois passava para as outras no afã de esgotar o estoque, dentro do possível. No entanto, quedava-se diante da dificuldade de ler tantos livros e da distração decorrente das imagens encontradas que terminavam desviando a atenção e ganhando espaço tanto quanto a própria leitura (ver, apenas olhar, era mais fácil). Guardaria na memória e reverenciaria o local por toda vida como se fosse solo sagrado, retendo as lembranças acolhidas e congeladas. Nunca mais retornara lá para evitar contaminação da sensação original e revisionismo de pensamento. Pensou em ir, mas desistiu, pois “as coisas passadas são melhor curtidas na versão original, não podem ser maculadas”. Viveu das lembranças vividas, aprisionadas e aprimoradas pelos sonhos da alma artística. Contudo, tomara o cuidado de encomendar e guardar, no interior de um vaso, um punhado de vagens de algarobas forasteiras, colhidas na praça das Algarobas, na avenida Guararapes/Júlio de Melo, local em que passou boa parte da feliz infância. Foi o único gatilho visível a que se permitiu, remetente de lembranças da cidade da infância perdida.
Foi lá, na biblioteca, que ele saiu em busca de elementos para descobrir e obter respostas de muitos porquês que lhe atanazavam o juízo. Em certa ocasião, diletante, procurou tomar conhecimento dos primórdios do lugar onde seria futuramente fundada a cidade de Petrolina, localidade em que nascera, na região ribeirinha do rio São Francisco. Chafurdou inúmeras fontes históricas — notas, diários e atos oficiais, artigos, jornais, livros e, em especial, a obra pronta, mas não publicada em série, do escritor nativo, Antônio Fernandes de Santana Padilha, intitulada Início de uma Saga. Tal volume, datilografado, mas cheio de manuscritos extravagantes, fora datado da segunda quadra do século XX, e escrito praticamente no calor dos acontecimentos, ou talvez um pouco depois, sendo o autor, fonte segura, inclusive porque contemporâneo e participante de muitos dos eventos narrados. Trata-se de obra de escol que foi pouquíssima lida em virtude da circulação apenas em caráter privado, sendo quase inédita, quase completamente esquecida (restou apenas um único exemplar). Exatamente por não compor a bibliografia histórica oficial da cidade, não é encontrada em qualquer local como base de informação. Não se trata sequer de obra preparada com o objetivo histórico, contudo, trata-se sem qualquer dúvida de um registro documental de grande valia, principalmente pela riqueza dos detalhes, pelo apuro do verbo, e, claro, pelo acerto quanto aos fatos, quando cotejado com outros registros oficiais inerentes à localidade.
Eventualmente, e como se trata de obra que já caiu no domínio público (ademais, foi tomado o cuidado de obter autorização dos herdeiros), parte do repositório de informações contidas na mesma será incorporado no curso deste relato sem qualquer reserva ou mesmo indicação antecipada da fonte. Tal fato, certamente, engrandecerá a qualidade da narrativa. De uma maneira geral, não será transcrito literalmente, mas sim, em respeito ao curso da narração, aproveitando-se, não só os fatos históricos, mas também os ditos de Antônio de Santana Padilha, no contexto do plano de desenvolvimento.
Como se vê até mesmo da indicação do título — Início de uma Saga —, a obra inédita, de leitura escorreita, apesar da densidade dos fatos e da interpretação do autor, faz uma abordagem profunda, relatando o nascimento da grei do fundador da cidade de Petrolina, Coronel Crescêncio Santana Souza. Desvela, ilustrando com vigorosas pinceladas de lenda e desregrada manifestação de simpatia, a figura de proa no alvorecer da localidade, o instituidor da “potentada Família Souza”, no dizer do escritor copiado. Atualiza, para os dias correntes, a pessoa que deixou marcas profundas, ainda hoje completamente avistadas sob diversas angulações. Avenidas, rodovias federais, escolas, entidades de apoio ao comércio e à indústria, fundações quase centenárias, ostentam o nome de Crescêncio Santana Souza, ou dos seus descendentes.