Lá vem o trem...

Lá vem o trem...

Nossos estúdios de desenho ficam no bairro da Lapa, em São Paulo.

Ocupam dois prédios bem arejados, envidraçados, numa rua cheia de depósitos e pequenas indústrias.

O nome da rua é daqueles que indicam sua história: rua do Curtume.

E com certeza, na rua de antigamente, muito couro era preparado, curtido, para

se transformar, depois, em calçados, cintos, assentos de poltronas, de cadeiras, selins, gibões, tapetes, e tudo o mais onde se usasse o produto.

Quem conhece um curtume sabe como as imediações ficam malcheirosas. A atividade usa como matéria prima a grossa pele dos bois, ainda com restos de carne, que vai sendo limpa, esticada, tratada, para, depois de muitos banhos de soda cáustica, virar o couro bem curtido que conhecemos.

Mas o processo de curtição também usa muita água. Por isso a localização: sob a

atual rua do Curtume passa um riacho canalizado, escondido, tapado, que, quando ainda em liberdade, servia para a lavagem das peles.

Hoje ainda temos sinais da vida desse riozinho cada vez que chove demais em São Paulo e o rio Tietê, logo ali, aumenta de nível. Daí o riozinho escondido que deveria desaguar um quilômetro adiante, muda o curso, reflui, e inunda boa parte da nossa rua.

É um contratempo na estação das chuvas mas não deixa de ser, também, um belo espetáculo.

A rua não é longa. Termina depois de umas 3 quadras, bloqueada pelos muros da estrada de ferro.

Mas nem sempre foi assim.

Antigamente, a rua do Curtume atravessava a via férrea e ia em direção ao alto da Lapa.

Uma cancela, com o clássico sinal sonoro das passagens de nível, segurava o trânsito quando um trem se aproximava.

As porteiras, dos dois lados, se fechavam automaticamente, o 'bim, bim, bim" da sinaleira continuava tocando até a passagem do último vagão, quando se fazia silêncio, de novo, e as porteiras se abriam.

E eu me lembro bem desse lugar. Desde uma noite perdida no tempo em que passei por ali de carro bem tarde da noite.

Ruas desertas, mal iluminadas, me faziam ir tateando o caminho.

Procurando a rua que me pusesse do outro lado da ferrovia. Foi aí que deparei com a passagem.

E me preparei para cruzar os trilhos, lentamente, pois o calçamento era muito irregular.

Foi quando o motor do carro morreu. Bem sobre as linhas do trem.

Tentei ligar de novo mas não conseguia. Só ouvia o barulho rascante do motor de arranque sem que o carro se movesse um centímetro. E tentava, e tentava, e nada.

Foi quando a sinaleira começou a tocar nervosamente, indicando a aproximação de um trem. E eu ali, "atolado" dentro do carro, no meio dos trilhos.

Para piorar, as porteiras começaram a se movimentar, atrás e à frente do carro, me prendendo irremediavelmente na estreita área por onde passavam as composições.

E eu nem podia ver se o trem estava próximo ou distante: os trilhos ali fazem uma curva no meio de paredes de fábricas.

Pensei em sair correndo do carro e ficar lá longe assistindo sua destruição. Mas... e se o trem descarrilhasse? E se a colisão provocasse consequências piores? Se o trem, desgovernado, entrasse pelas fábricas, pelas casas próximas?

Então usei de um artifício que tinha esquecido até ali: engatei a primeira marcha e fui girando a chave de ignição, ligando e desligando. A cada ligada, o carro dava um saltinho pra frente. Mas eu tinha dúvida sobre se o espaço que sobrava entre o trilho e a porteira fechada seria suficiente.

Achava que ia ficar sem, pelo menos, a traseira do carro. E continuei dando os saltinhos até encostar na cancela.

A campainha continuava a "gritar", desesperada, que um trem vinha chegando.

Desci para espiar até onde ia a traseira. Estava muito próxima do primeiro trilho. Mas pelo menos não ia haver um choque total.

Cruzei a porteira e fiquei lá longe, na rua, aguardando pouquinha coisa... e o trem passou a toda velocidade... a alguns centímetros do para-choque do automóvel.

Respirei aliviado, voltei para o carro e, depois que a porteira se abriu, voltei a dar os saltinhos até ficar bem longe dos trilhos e estragar o motor de arranque.

Um guincho, logo depois, pela madrugada, levou o carrinho morto. Uma boa oficina iria reanimá-lo.

Eu, pelo contrário, precisava é de uma boa noite de sono.

Também...depois daquele susto.

Mauricio de Sousa

(Publicado originalmente em 10.11.1998)

Camila Laura

Análise de Mercado | Inteligência de Marketing | Comunicação Estratégica | Marketing Digital | Pesquisa de Mercado | Planejamento Estratégico | Marketing de Influência

3 m

Deve ser incrível trabalhar na MSP. Parabéns por esses anos fazendo historias e alcançando tantos através delas

Reinaldo Paes Mendes

Gerente Predial na Condomínio Edifício Axis

4 m

Que história incrível e ao mesmo tempo assustadora. Curti bastante

Mário Pinheiro Filho

Relações Públicas | ênfase em Alta Performance | Comunicação Corporativa O profissional certo para aumentar o patamar de empresas incríveis.

5 m

Mauricio de Souza criou mais do que apenas uma Legião. Você faz parte de toda uma geração. Obrigado por isso, pois também faço parte dessa história toda. Parabéns pelo trabalho!

Alessandra M.

Assistant | Support | Social Media

5 m

Como é bom ler tudo o que Maurício de Sousa escreve, me transportei para o local e sempre visualizo um mundo onde os habitantes são mais gentis com a natureza.

Professor, como o belíssimo Mario Graciotti escrevemos a Segunda Moeda que salva o mundo, literalmente, em Medicina..

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