A "Lei de Gerson" ainda está em vigor?
Quando entenderemos que o "jeitinho" não é a melhor saída?
Este artigo é, em realidade, uma crônica jurídica (ou, como dizem os mais velhos, um "causo"). Mas antes de discorrer sobre os acontecimentos, faço questão de contextualizar o ambiente cultural onde eles ocorreram (e onde todos nós habitamos e trabalhamos).
A publicidade brasileira é fascinante! Ela é tão eficiente em suas mensagens que, muitas e muitas vezes, influenciou a cultura popular com gatilhos mentais (1) que permaneceram por gerações no imaginário e no vocabulário popular.
Um desses exemplos está na campanha de mídia de uma antiga marca de cigarros brasileira, o "Vila Rica". O slogan "gosto de levar vantagem em tudo" acabou por encontrar reflexologia na cultura popular e virar umas das maiores "marcas" de autoproclamação brasileira, sendo apelidada e convocada como "Lei do Gerson".
Gerson de Oliveira Nunes, um dos grandes futebolistas brasileiros (2), jamais imaginou tais consequências de ter aceitado estrelar essa campanha... Ele mesmo explica o quanto isso (mal) influenciou em sua vida, e que jamais teve intenção de transparecer um permissivo à ilicitude: Vídeo Lei de Gerson .
Em termos gerais, A "Lei de Gerson é um princípio em que determinada pessoa ou empresa obtém vantagens de forma indiscriminada, sem se importar com questões éticas ou morais" (3). Também chamado de "jeitinho brasileiro" (4), em geral importa na cultura inconsciente do brasileiro de agregar valor às soluções mais fáceis e diretas ao interesse momentâneo, mesmo que isso signifique burlar certas regras institucionais. Fernanda Carlos Borges bem explica (5):
"“As instituições modernas europeias supervalorizam a instância ideal. Nelas, a regra nunca pode ser questionada. Por isso somos tão criticados. O jeito brasileiro afronta a norma, pois na cultura popular a necessidade humana tem mais valor.”
Quer concordemos ou não com essa justificativa; quer sejamos adeptos ou não da validade da "Lei de Gerson", somos forçados a concordar que a mesma está impregnada no subconsciente do brasileiro, que costuma a agregar valor a quem diz resolver questões através do "jeitinho brasileiro".
Isto posto, vamos aos acontecimentos exatamente como eles se deram.
Anos atrás, uma cliente me procurou.
Numa determinada comarca onde trabalho, uma pessoa me procurou em meu escritório. Chegou ao meu nome por indicação de um cliente querido e antigo. Ela tinha um comércio muito conhecido na cidade dada a característica do seu público alvo, e sua lida era com produtos de altíssimo valor agregado.
Mas aconteceu um problema: dada algumas negociações mal formalizadas com uma pessoa pouco honesta, restaram cobranças (já pagas) que o antigo credor enviou a cobrança bancária e, após, a protesto em cartório. Ela tentou de toda sorte dissuadi-lo da (indevida) cobrança, inclusive com ameaças físicas (era uma jovem senhora de temperamento colérico).
Ela tinha ampla documentação para comprovar suas razões. Ela realmente não devia aquele valor! E acho sinceramente que o suposto credor sabia disso, mas, na eminência de conseguir uma vantagem (indevida), optou por manter a cobrança.
Tais questões aconteceram antes do novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/15). No antigo CPC (Lei 5.869/73) a processualística era bem diferente do que é hoje. Assim mesmo, não é difícil entender as opções processuais que a equipe elegeu e a ela apresentamos: uma declaratória de negativa de obrigação cambial e de nulidade de protesto, cumulada com indenização por abalo moral, tendo pedido de antecipação de tutela - esta, popularmente falando, a famosa "liminar". A obtenção de uma providência imediata e liminar era importante: seu giro financeiro não poderia esperar a tramitação total de um processo judicial (que convenhamos, sabemos ser demorado).
Estratégia montada e apresentada à cliente, passamos à negociação da proposta honorária. Ela foi enfática em recusar a proposta de valores que lhe fizemos... Sua argumentação era algo do tipo "eu é que tenho razão! no final do processo faz ele pagar tudo, ué!". De início ela não aceitou escutar nossos contra argumentos... E chegamos a um momento de quase ruptura, onde me posicionei pelo não realizar o serviço. Ao final, mesmo tendo flexibilizado minha proposta, a mesma deixou claro que estava aceitando a contra gosto, mas que o faria pela necessidade premente em que se encontrava.
Petição inicial pronta, vamos ao fórum!
Contrato firmado, honorários iniciais pagos, processo montado (nesse tempo, o processo ainda era "de papel"), a equipe compareceu ao fórum para o protocolo e distribuição do mesmo para uma das varas cíveis daquela comarca.
Não demos sorte na distribuição inicial. Eu conhecia a juíza titular daquela vara e sabia que a mesma não era dada a liminares de sustação de protesto sem caução em garantia (o que era quase uma exceção, pelo que já havia prevenido a cliente). Naquele dia, no final da tarde, a ansiosa cliente me ligou e lhe expliquei a situação: "- Nosso processo 'caiu' com a Dra. 'Fulana', que não costuma a deferir liminares de sustação sem prévia caução. Amanhã ela estará disponível para atendimento, e pretendo conversar pessoalmente com ela."
A primeira reação dela foi um sonora gargalhada, seguida de "- Dra. Fulana? Minha cliente! Não sai da minha loja! Vive aqui! Nem fale com ela Dr. Daniel! Eu mesmo dou conta disso!"
Alertei que não achava ser uma boa ideia. Mas além de insistir, ainda me saiu com "- Eu é que vou ter que fazer seu trabalho né, Dr. Daniel! Vou querer desconto no que você me cobrou!". A conversa ainda se estendeu por alguns detalhes, mas me recordo bem da última frase que ouvi ao telefone (inclusive pelo tom e volume de voz): "- Vou querer desconto!"
A Dra. Fulana se manifestou rapidamente no processo!
Recordo-me que, dois dias depois, eu estava no fórum e resolvi passar no cartório da vara cível respectiva para ver aquele processo (os serviços de internet forense ainda não eram como os de hoje). Uma vez com os autos em mãos, lá estava o despacho da Dra. Fulana (hoje, já disponível pela internet):
O embasamento legal que ela usou para declinar sua competência e enviar o processo para outro juiz é autoexplicativo no antigo CPC (aqui reproduzido em resumo):
"Reputa-se fundada a suspeição de parcialidade do juiz, quando alguma das partes for credora ou devedora do juiz, de seu cônjuge ou de parentes destes, em linha reta ou na colateral até o terceiro grau."
Pois é... A Dra. Fulana era realmente freguesa da minha cliente; a minha cliente realmente foi falar com a Dra. Fulana; e... A Dra. Fulana se declarou impedida de julgar o processo justamente por ser freguesa... Que maravilha!
Creio não ser necessário discorrer o quanto isso atrasou o processo. Também creio não ser necessário discorrer o silêncio sepulcral que se seguiu no telefone após eu ter informado a cliente deste despacho. Aliás, conhecendo Dra. Fulana como conheci, penso que ela nunca mais voltou na loja dessa minha cliente.
O novo juiz deferiu liminar, mas exigiu caução. Após algum trabalho de convencimento direto com ele, com seus assessores e de peticionamento, conseguimos trocar a garantia real pela garantia fidejussória (uma simples nota promissória).
Após dificultar ao máximo a sua citação inicial, assustado com a demanda proposta e com a necessidade de dispender com advogados, a parte contrária nos procurou e propôs acordo. Aberta a negociação, chegamos a um bom termo para a cliente. A parte contrária retirou o protesto, arcou com todas as custas, indenizou um valor interessante para minha cliente e pagou o restando dos meus honorários. Caso encerrado!
Na hierarquia das Leis Universais a "Lei de Gerson" é uma anomalia!
"Eu gosto de levar vantagem em tudo, certo?" Errado! Você leva vantagem aqui, alguém leva desvantagem em algum momento do espaço-tempo. E o que acontece? Implacavelmente o Universo fará seu equilíbrio ser restabelecido para que alguém leve vantagem sobre você.
É que a "Lei de Gerson" é uma anomalia na malha tecido natural que compõe o Universo. Quando invocada e posta em uso, ela altera a tessitura dos acontecimentos que deveriam estar sobre o condão de princípios universais mais altos, como a "Lei do Retorno" (6), a "Lei do Equilíbrio", entre outras...
Minha cliente quis "levar vantagem"... Mal esperou o deslinde natural do destino, resolveu se valer do "jeitinho brasileiro" para conseguir algo lícito, mas de forma que, senão ilícita, no mínimo antiética e amoral.
É tão comum tal conduta... E com sua prática reiterada, se perde cada vez mais os contornos da retidão moral, chegando aos escândalos de corrupção que tanto se noticiam, cada vez mais...
Sinceramente? Considero-a uma privilegiada pelo ocorrido! Teve a oportunidade de receber um ensinamento precioso do Universo, e sem maiores consequências... Espero que tenha valido a lição!
E espero que todos possamos, sempre, aprender essas lições com esse(s) professor(es), que tantos nomes recebem, e que o talentoso musicista Jorge Vercillo chama de "São Jorge":
"De lá da Lua cheia, são Jorge assiste calado. E sabe do universo, que nada é casual. O dragão da ganância em nós deve ser domado. (...) Ai de quem desvia dinheiro público! Ai de quem só governa em causa própria! Que jogo sujo! Ai de quem lesa escolas e hospitais. É tanta maldade junta... Mas isso tem que acabar!
(1) Sobre gatilhos mentais, ainda que um tanto quanto fora do escopo do presente artigo, vide: www.linkedin.com/pulse/o-ato-do-julgamento-e-representa%C3%A7%C3%B5es-internas-julgador-daniel-melim
(5) BORGES, Fernanda Carlos; "A filosofia do jeito — Um modo brasileiro de pensar com o corpo"; São Paulo: Summus Editorial; ISBN: 85-323-0231-9.
(6) Sobre a "Lei do Retorno", vide excelente artigo em: https://www.psicologia.pt/artigos/ver_opiniao.php?a-lei-do-retorno&codigo=AOP0409