LEITURA E LITERATURA NA CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO LEITOR
O presente trabalho é fruto do desenvolvimento de curso de extensão oferecido na Universidade do Estado da Bahia, no Departamento de Educação – Campus I, fruto de reflexões feitas durante desenvolvimento de pesquisa de doutoramento em Educação realizado na Universidade Federal da Bahia, sob orientação da Professora Doutora Dinéa Maria Sobral Muniz e já vem sendo oferecido à comunidade soteropolitana há dois semestres. Participam do curso, estudantes de graduação e pós-graduação da UNEB, estudantes de graduação e pós-graduação das mais diversas universidades públicas e particulares, professores que atuam na educação infantil e ensino fundamental e demais profissionais que atuam em escolas públicas e particulares, além de demais interessados na leitura e na literatura.
Sob o título de Leitura e literatura na constituição do sujeito leitor, o curso funda-se na crença defendida por vários autores e aqui representada por Coelho que assevera que:
A Literatura é um autêntico e complexo exercício de vida, que se realiza com e na Linguagem – esta complexa forma pela qual o pensar se exterioriza e entra em comunicação com os outros pensares. Espaço de convergência do mundo exterior e do mundo interior, a Literatura vem sendo apontada como uma das disciplinas mais adequadas (a outra é a História) para servir de eixo ou de “tema transversal” para a interligação de diferentes unidades de ensino nos novos parâmetros Curriculares (grifos da autora), (COELHO, 2000, P. 24).
Concordando com o eixo central do que defende essa autora, problematizamos o que ela chama de disciplinas, pensando que mais que um conjunto de saberes separados em caixinhas, é preciso ver a educação, notadamente a educação da criança, como uma soma de conhecimentos acumulados socialmente, uns mais privilegiados que outros na escola, conforme os contextos, que, ao final, resultarão em mudança de atitude de quem ensina ao aprender e de quem aprende ao ensinar, como nos ensina Freire (1996, p. 23). Assim, todas as áreas do conhecimento já produzidos socialmente e privilegiados para estarem na sala de aula, inclusive a História, podem ser dialogados com quem aprende num “autêntico e complexo exercício de vida” (COELHO, 2000, p. 24). Exercício que se vê facilitado através da Literatura.
Sendo assim, o curso de extensão ora apresentado tem por objetivo provocar ações pedagógicas voltadas para as crianças da educação infantil e anos iniciais, através de atividades lúdicas, seja na forma de contação de histórias, narração ou declamação, considerando essa uma atividade multidisciplinar que provoca a interdisciplinaridade. Segundo Piaget (1981, p. 52), na multidisciplinaridade, recorremos a informações de várias matérias para estudar um determinado elemento. Nesse curso, se lança mão da Psicanálise, Didática, Crítica literária, estudos culturais, envolvendo gênero, raça e sexualidade, História, Política, Economia e Religião, entre outras, para provocar a interdisciplinaridade.
Segundo Coelho (1999), são diversas as formas de levar a literatura para as crianças: seja a contação de história, pautada na oralidade, nas modulações de voz, nos gestos e postura do contador, o que ela chama de simples narrativa (COELHO, 1999, p. 31-32); ou a narrativa com auxilio do livro, lendo-o, mostrando as suas ilustrações, deixando a criança perceber o prazer que pode ser encontrado naquele objeto de construção social (COELHO, 1999, p. 32-38); ou o uso de gravuras, o qual exige a leitura estética das imagens, as quais ampliam a organização do pensamento da criança (COELHO, 1999, p. 38-40); ou com a interferência do narrador e dos ouvintes, ou seja participação ativa dos ouvintes (COELHO, 1999, p. 43-46). Isso para citar as privilegiadas no curso, ao lado das declamações de poemas.
Essas possibilidades são apresentadas de forma prática aos cursistas que ouvem as histórias e, depois, participam de atividades críticas de diálogo com o texto apresentado, seja na forma de exercício de exteriorização de sensações e situações vividas, seja na forma de mergulho na materialidade textual, revivendo suas nuances e estéticas, seja no diálogo da convergência com o mundo físico contextual de suas vivências. Esses momentos de sensibilização para a estética do contar e ouvir histórias, são sempre permeadas de reflexões sobre as muitas possibilidades do dizer inerente a uma pedagogia que se pretende multidisciplinar e eivada de aspectos lúdicos do acesso ao conhecimento.
A ação lúdica e interdisciplinar visa a mediação do sujeito leitor em seu processo de enleituramento, termo cunhado durante pesquisa de doutorado para dar conta da capacidade humana de tornar-se leitor de mundo, tendo na leitura uma ação que é contínua e ampliada a cada contato com o contexto que o cerca enquanto faz a leitura do texto (OLIVEIRA, 2013). Para tanto, apoiamo-nos nos estudos sobre a ludicidade, principalmente, com Dias (2002), autora que entende o lúdico como dinamizador da aprendizagem, desenvolvendo habilidades que não estão voltadas apenas para o cognitivo, mas, também, para o social, afetivo, emocional, através das representações simbólicas verbalizadas em metáforas. Assim, entendendo a literatura de forma ampla, igualando-a ao brincar, preservamos o direito da criança pensar, reinventar, criar e até produzir sua própria cultura.
No entanto, entendendo que para que essa forma de olhar pedagogicamente o processo de ensino aprendizagem seja possível, o currículo escolar precisa ser repensado, conforme Macedo (2011), como atos de currículo, tendo na leitura literária, segundo Bettelheim (2002), um componente interdisciplinar, transversal e cultural, por exercer a função de agente de transformação, uma vez que contribui para sua formação integral, provocando inúmeras emoções e sensações, dando prazer e divertindo, fazendo com que esse sujeito se transforme em um o leitor capaz de ver o mundo com outros olhos.
Com esse aporte multidisciplinar que transita entre as discussões sobre currículo, literatura, psicanálise, pedagogia entre muitos outros, esse curso usa da interdisciplinaridade como veio fulcral do ensino-aprendizagem, buscando mediar as aprendizagens através da linguagem da criança, na sua forma particular de ver e interagir com o mundo, ou seja, o lúdico. As ações metodológicas têm sempre conotação de oficinas, entremeadas de aulas expositivo-dialogadas, buscando no lúdico e na interdisciplinaridade os caminhos possíveis para o ensino-aprendizagem que promova a autonomia pregada por Freire (1996), a intercriticidade pregada por Macedo (2004), o olhar lúdico apresentado por Dias (2002), as possibilidades apresentadas por Coelho (1999), entre outros.
Para isso, dispositivos de escuta sensível, realização de atividades de leitura, com envolvimento lúdico e discussões teóricas nos campos variados em que se insiram os textos literários, focando a produção de leitura e de texto, na perspectiva da leitura crítica defendida por Freire (1996), são realizadas, considerando que a leitura, notadamente a literária, é o caminho privilegiado da formação cidadã. Os momentos de interação são sempre recheados de expectativas, de interação com o texto e com os partícipes do curso, sendo travados diálogos que promovem diversas aprendizagens.
Os resultados até aqui apresentados são a sensibilização de professores, estudantes de licenciatura e demais profissionais da educação para o fato de que o ensino através do lúdico promovido pela literatura, provoca aprendizagens bem mais significativas, além de exercer o papel precípuo da educação: a formação cidadã, disparando discussões sobre individualidade, transubjetividade e globalização.
Ao final do curso, como culminância das atividades realizadas, os cursistas são chamados a demonstrarem o conhecimentos construídos ao longo do curso, através de sessões de contação de histórias, leitura lúdica, declamação de poemas. Esse momento é sempre recheado de emoções verbalizadas na forma de reflexões sobre os seus próprios percursos de aprendizagem durante o percurso escolar enquanto estudantes e de reflexões de mudanças de paradigmas e de revisitação de suas práticas enquanto docentes envolvidos com o ensino aprendizagem de crianças. Com isso, o objetivo maior do curso é alcançado.
REFERÊNCIAS
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 16.ed. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 2002.
COELHO, Betty. Contar histórias: uma arte sem idade. 10 ed. São Paulo: Ática, 1999
COELHO, Nely Novaes. Literatura: arte, conhecimento e vida. São Paulo: Petrópolis, 2000
DIAS, Marina Célia Moraes. Metáfora e pensamento: considerações sobre a importância do jogo na aquisição do conhecimento e implicações para a educação pré-escolar. In: KISHIMOTO, Tizuko (org). Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. 6 ed. São Paulo: Cortez, 2002
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Terra e Paz, 1996
MACEDO, Roberto Sidnei. A etnografia crítica e multirreferencial nas ciências humanas e na educação. 2 ed. Salvador: EDUFBA, 2004
MACEDO, Roberto Sidnei. Currículo: campo, conceito e pesquisa. 4 ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2011
PIAGET, Jean. Problémes Géneraux de la Recherche Interdisciplinaire et Mécanismes Communs. In: PIAGET, Jean. Épistemologie des Sciences de l’Homme. Paris: Gallimard, 1981
Professora de Métodos Estatísticos e Estágio Curricular na Universidade do Estado da Bahia
9 aA leitura é a saída. Quanto mais lemos mais sabemos e quanto mais sabemos menos somos manipulados.