A lição de Sócrates: Por que, para o filósofo, é preferível ser roubado a ser um ladrão?
Permitam-me compartilhar uma breve reflexão do filósofo e professor José Sérgio Fonseca de Carvalho, Doutor em filosofia da educação pela Feusp e pesquisador convidado da Universidade Paris VII, versando sobre uma das tantas misérias humanas impregnadas no DNA das pessoas.
Escreve ele que num dos mais notáveis diálogos de Platão, Górgias, Sócrates enuncia uma máxima que será, ao longo dos séculos, diretamente associada à sua figura histórica e ao próprio surgimento da reflexão ética na Grécia: “É melhor sofrer o mal do que o cometer”. À primeira vista, seu enunciado pode parecer um tanto paradoxal ou, na melhor das hipóteses, de um altruísmo quase inviável. Não obstante, se atentarmos para o contexto de seu uso, ele revela mais um cuidado de si do que uma abnegação em favor do outro. Por que, para Sócrates, é preferível, por exemplo, ser roubado a ser um ladrão?
A resposta, na verdade, lhe parece simples e mesmo óbvia: se eu descobrir que fui roubado ou trapaceado por outro, a despeito do eventual prejuízo material, sempre posso me afastar de quem cometeu esse ato que me prejudicou. No entanto, se for eu mesmo o ladrão, estarei condenado a lembrar desse ato e terei de conviver para o resto de minha vida com um ladrão! Assim, para Sócrates, a ação eticamente reprovável prejudica a convivência daquele que a pratica não simplesmente com o outro, mas consigo mesmo. Ela não produz infelicidade somente para aquele que dela foi vítima, mas também – e, sobretudo, – para quem a perpetrou.
É verdade que aquele que comete o mal sempre pode esquecer. Ele pode não mais pensar no que fez e apagar de sua consciência o teor de seus atos. Mas isso implica um mal ainda maior: perder-se de si mesmo. Recusar-se a pensar acerca de seus próprios atos implica destruir a capacidade humana de conversar consigo mesmo; de retomar, narrar e julgar seus atos tendo em vista não somente a convivência com o outro, mas o convívio respeitoso para consigo mesmo. E é essa capacidade de refletir que nos constitui como pessoa; como humanos e não simplesmente como mais um exemplar da espécie Homo sapiens.
Por isso a ética socrática, mais do que uma ética do dever em relação ao outro, é uma ética da integridade consigo mesmo. Cuidar de si, desse diálogo silencioso de que somos todos capazes, significa nos constituirmos como seres pensantes e dotados de consciência moral. E não o fazemos simplesmente porque isso é um dever para com o outro, mas também porque é a nossa própria oportunidade de levar uma vida que valha a pena ser vivida; uma vida para a qual podemos olhar retrospectivamente e afirmar que fomos dignos do mais precioso bem que nos foi dado: nossa existência em meio à pluralidade dos homens.
A ética socrática é, assim, uma ética da felicidade. Não a felicidade entendida como um bem-estar psicológico momentâneo, mas como um modo de vida que se escolhe a partir do reiterado exame dos nossos atos à luz de nossa consciência. Nisso reside o valor formativo dos atos e das palavras de Sócrates. Afinal, no julgamento que resultou em sua morte, ele afirmou que preferia morrer a cessar de examinar a própria vida. A integridade da pessoa lhe parecia mais preciosa do que a manutenção da vida de um mero Homo sapiens.
Jonas Dietrich