LIVRO "O CAMINHO DO CORDEIRO"

LIVRO "O CAMINHO DO CORDEIRO"

A escritura cristã é muito criticada pelos seus paradoxos. Há muitos conceitos que são ou assemelham contradição ao que seja comum. O que é aparentemente contraditório pode ser percebido na bíblia em termos de ver o invisível, a liberdade sendo servo, ter sabedoria na loucura, o menor ser o maior, ter tudo e não ter nada, o último ser o primeiro e o primeiro ser o último, a humilhação com vistas à exaltação, ser fraco para ser forte, triunfar na derrota e muitos outros casos. Ao que parece, a obra em apreço pretende fornecer alguns elementos para um desses paradoxos, ou seja, como os primeiros cristãos “se entendiam em função de uma mensagem que os declarava vitoriosos, mesmo diante de papéis sociais que os apresentava de forma inversa, perseguidos e até mortos”. Que implicação!

O livro “O Caminho do Cordeiro: Representação e Construção de Identidade no Apocalipse de João” faz parte da coleção “Palimpsesto”.[1] O autor, o mineiro Valtair Afonso Miranda, é mestre e doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo, com pesquisas na área e história antiga e medieval, bem como literatura e religião no mundo bíblico, principalmente em temas como cristianismo e judaísmo antigos, escatologia e milenarismo, apocalipse e apocalíptica. Além disso, é graduado em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil e pela Faculdade de Teologia Sul-Americana.

Perceptivelmente acadêmica, a obra é dividida em quatro harmônicos capítulos que abrangem (1) texto e contexto do Apocalipse de João, (2) as entranhas de uma visão, (3) representação de identidade no contexto do culto e (4) construção de identidade em contexto de crise. Com a referida estrutura literária e partindo da visão apocalíptica revelada em Apocalipse 14.1-5, o autor pretende analisar a relação das palavras de João com sua audiência; não necessariamente o mundo do visionário, mas a forma como esse mundo possivelmente atuou na definição da identidade dos leitores e leitoras. Afinal, “a principal fonte para acessar essas comunidades ou sua situação vivencial é a própria obra do visionário”.

As questões gerais que englobam o último livro da escritura cristã, texto e contexto, compõem o primeiro capítulo do livro. Enunciando as teses comuns de datação, autoria e público, Miranda inova na construção do mundo apocalíptico e definição de identidade sectária, demonstrando como os mundos dispostos em conflito configuram um confronto de poder em diversos níveis de legitimação. Ainda demonstra como tal perspectiva é bem fundamentada nos movimentos sectários de Qumran e no período do segundo Templo (fariseus, saduceus, essênios, sicários, zelotes, cristãos, samaritanos e terapeutas). Ora, o Apocalipse é “obra de um homem de etnia judaica [... que oferece] uma específica e divergente definição de mundo para sua audiência”. Assim, o mundo concreto dos leitores e ouvintes foi rivalizado com o mundo apocalíptico arquitetado pelo visionário no texto.

O capítulo dois expõe uma análise restrita de Apocalipse 14.1-5, o que denomina como entranhas de uma visão. Dentro do contexto judaico e com o auxílio de instrumentos de análise sincrônica, o autor penetra profundo nas relações entre gênero e contexto literários (a partir de conceituados referenciais teóricos como John J. Collins, David E. Aune e Adela Collins), entre estrutura e tradução do episódio (fixando o Apocalipse como uma obra mais voltada para a audição do que para a leitura). Uma vez que tal literatura funciona “para interpretar circunstâncias presentes à luz de realidades sobrenaturais”, Miranda entrelaça a rede de relações tradicionais e intertextuais da perícope bíblica em foco a partir de onze tópicos (o cordeiro de pé, os 144 mil, o nome das bestas, um som vindo do céu, um som forte e belo, a canção nova, privilégio especial, virgens e imaculados, seguir o cordeiro, comprados como primícias, sacrifício especial), com o objetivo de “entender suas partes, seu lugar dentro do livro como um todo e suas expressões principais”.

“A identidade exaltada em contextos litúrgicos representa o que seria comum entre o visionário e sua audiência”. Como contexto vital da obra e de seu tempo (Novo Testamento), ainda que relacionado com antigos conhecimentos judaicos, Miranda identifica a tradição que envolve o culto no céu como formação e afirmação de identidade compartilhada com a audiência. Daí o capítulo três abordar a representação de identidade no contexto do culto. Os elementos litúrgicos estão lá, na tradição do culto celestial repleto de canções, orações, doxologias, exortações, etc.. Ora, o visionário até situa sua obra no dia em que as comunidades se reuniam para cultuar, “o dia do Senhor”. Portanto, mediante exame de vários textos do último livro da bíblia cristã (capítulos 1.4-6, 1.8, 2-3, 4, 5, 7.9-17, 11, 12.1, 15, 16, 18, 19, 21), o autor estabelece que o Apocalipse de João seja uma obra profundamente relacionada com a liturgia das igrejas dos primórdios e tem no culto seu contexto vital. A escatologia realizada compõe muito dessa “profunda e coerente formulação identitária”.

Na guerra escatológica percebida pelo visionário os soldados são imaculados. Apresentando a audiência em níveis sectários e recordando a tradição da guerra “santa” no fim dos tempos, Miranda elabora a construção de identidade em contexto de crise no quarto capítulo de seu livro. Os manuscritos de Qumran encontrados em 1947 contêm muito dessa expectativa escatológica judaica. Dentre eles, pela perspectiva semelhante ao Apocalipse de João acerca do conflito final, se destaca o Rolo da Guerra. O autor apresenta esse grupo de manuscritos como repletos de rituais e experiências litúrgicas no ambiente de conflito escatológico. Ademais, ele demonstra como a instituição e a tradição da guerra santa em Israel estão entrelaçadas religiosamente com as atividades bélicas no período anterior a instituição da monarquia israelita, no Rolo e nas cartas endereçadas às igrejas no último livro da bíblia cristã. Por fim, mesmo com interrupções, prolepses e repetições no livro bíblico, Miranda desdobra a tradição da guerra escatológica no culto celestial em Apocalipse declarando como a audiência, composta pelos “santos” (aqueles que não caíram nem se contaminaram com a sociedade prostituída), vencerá o conflito contra o “Dragão”: seguindo no caminho do “Cordeiro”. Assim, a audiência é moldada no instante que é convocada e participa da guerra escatológica. Esse dualismo sectário e radical tem nuances no Rolo da Guerra e no Apocalipse de João.

Finalmente, deve-se dizer que a obra de Miranda é pertinente e agrega valor a literatura no vernáculo que explora a apocalíptica. Essencialmente acadêmico, o autor não peca na transmissão clara do conteúdo que propõe. A estrutura é didática. O estilo é acessível. A pesquisa é bem conduzida. É curioso, por outro lado, o pouco uso de notas de rodapé. Ainda assim, a partir de um pequeno texto bíblico de cinco versículos Miranda descreveu quase duas centenas de um rico conteúdo para os estudiosos do Apocalipse atribuído a João e da apocalíptica judaica. Ora, se são bem-aventurados aqueles que leem, aqueles que ouvem as palavras da profecia e que guardam as coisas nela escritas, pois o tempo está próximo (Apocalipse 1.3), igualmente serão afortunados os leitores que se esmerarem na compreensão de “o Caminho do Cordeiro”.

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RESENHA ACADÊMICA

MIRANDA, Valtair Afonso. O Caminho do Cordeiro: Representação e Construção de Identidade no Apocalipse de João. São Paulo: Paulus, 2011. 196 p. 21 cm x 13,5 cm. ISBN 978-85-349-2142-8

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[1] Coordenada editorialmente pelo Prof. Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira (Universidade Metodista de São Paulo), a coleção engloba as obras “Bíblia, Literatura e Linguagem”, de Júlio Paulo Tavares Zabatiero e João Leonel; “Mateus, o Evangelho”, de João Leonel; “Identidades e fronteiras étnicas no Cristianismo da Galácia”, de José Luiz Izidoro; “Uma história cultural de Israel”, de Júlio Paulo Tavares Zabatiero.




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