A Loucura e a Reforma Psiquiátrica no Brasil: Análise Sob a Ótica dos Direitos Humanos e da Humanização da Saúde Mental
A história da loucura é marcada por diferentes formas de lidar com o sofrimento mental ao longo dos séculos. A trajetória de como a sociedade enxerga a loucura, e consequentemente seus portadores, transita entre momentos de exclusão e confinamento até a busca pela humanização do tratamento, principalmente a partir da segunda metade do século XX, quando a Reforma Psiquiátrica ganha força no Brasil.
Na Antiguidade, o conceito de loucura estava frequentemente associado a explicações religiosas ou sobrenaturais. Aqueles que apresentavam comportamentos tidos como fora do comum eram muitas vezes vistos como possuídos por forças divinas ou demoníacas.
Segundo Foucault (2006), o período clássico foi o marco da “grande internação”, quando a loucura passou a ser entendida como um problema social, resultando no confinamento de indivíduos em asilos e hospitais.
Essa visão permeou boa parte da Idade Média e Modernidade, quando o louco foi excluído do convívio social, tratado como um desvio da norma e, portanto, destinado ao enclausuramento (Foucault, 2006, p. 45).
No entanto, ao longo dos séculos XIX e XX, com o avanço das ciências médicas, a loucura passou a ser gradualmente diagnosticada, e o tratamento de pessoas com transtornos mentais começou a se moldar segundo os avanços da psiquiatria.
O foco deslocou-se da contenção para uma tentativa de compreensão e cura, embora a segregação ainda prevalecesse. A lógica do manicômio, que buscava isolar os chamados “loucos” da sociedade, permaneceu até meados do século XX, quando movimentos reformistas começaram a questionar essas práticas.
A Reforma Psiquiátrica no Brasil emerge como um movimento político e social na década de 1970, quando profissionais de saúde mental e familiares de pacientes começaram a denunciar os abusos cometidos em instituições manicomiais. Inspirada pela Reforma Psiquiátrica Italiana liderada por Franco Basaglia, o Brasil iniciou um processo de revisão das práticas psiquiátricas, questionando a centralidade dos hospitais psiquiátricos no tratamento da loucura e propondo um novo modelo baseado na inclusão e na dignidade humana.
Segundo Amarante (2007, p.89 ), a Reforma Psiquiátrica Brasileira “se propôs a desinstitucionalizar o cuidado em saúde mental, substituindo os hospitais psiquiátricos por uma rede de serviços comunitários que privilegiavam o cuidado integral, interdisciplinar e em liberdade”.
Assim, o movimento reformista brasileiro propôs o fechamento progressivo dos hospitais psiquiátricos e a criação de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que visavam o tratamento multidisciplinar e o acompanhamento próximo da pessoa com sofrimento mental em seu ambiente comunitário.
O marco legal que consolidou esse processo foi a Lei 10.216/2001, conhecida como a Lei da Reforma Psiquiátrica, que estabelece que o tratamento de pessoas com transtornos mentais deve ser preferencialmente em serviços de saúde mental comunitários, promovendo a reintegração dessas pessoas na sociedade e garantindo seus direitos humanos.
A discussão sobre os direitos humanos em relação à saúde mental no Brasil ganhou força com o desenvolvimento da Reforma Psiquiátrica. Historicamente, os hospitais psiquiátricos eram locais de violação dos direitos das pessoas internadas, onde predominavam práticas de violência, maus-tratos, e tratamentos desumanizantes. Nesse sentido, a Reforma Psiquiátrica trouxe à tona a necessidade de observar os princípios dos direitos humanos na atenção à saúde mental.
Para Pessoti (1996, p.127) “a Reforma Psiquiátrica surge como uma forma de resgatar a dignidade humana daqueles que, por muito tempo, foram relegados ao esquecimento e à segregação, garantindo-lhes o direito de serem tratados com respeito e em liberdade”. Dessa forma, a humanização dos serviços de saúde mental se torna uma questão central no debate sobre como tratar de maneira ética e respeitosa aqueles que sofrem de transtornos mentais.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada em 1948, estabelece que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”, e isso inclui as pessoas que sofrem de transtornos mentais. O reconhecimento de que essas pessoas possuem direitos como qualquer outro cidadão levou à criação de políticas que visam protegê-las e promover sua inclusão social, ao invés de confiná-las em instituições asilares.
O tratamento humanizado, pautado no respeito à autonomia e à dignidade da pessoa, é um dos princípios centrais da reforma.
O conceito de humanização da saúde mental é um dos pilares da Reforma Psiquiátrica. De acordo com Rotelli (1999, p.54) “humanizar o cuidado em saúde mental significa reconhecer a pessoa em sofrimento como sujeito de direitos, promovendo sua cidadania e seu lugar na sociedade”. Assim, a humanização é compreendida não apenas como uma melhoria nos tratamentos oferecidos, mas também como uma transformação profunda na forma como a sociedade enxerga e trata aqueles que enfrentam transtornos mentais.
Nessa perspectiva, o Sistema Único de Saúde (SUS) e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) desempenham um papel crucial ao oferecerem um cuidado pautado na atenção integral, na interdisciplinaridade e no respeito aos direitos humanos. As práticas coercitivas, como as internações involuntárias e os tratamentos baseados na exclusão, são progressivamente substituídas por abordagens mais inclusivas, que valorizam a convivência comunitária e a reinserção social dos indivíduos em sofrimento psíquico.
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Para Desviat (2011, p.75), a humanização na saúde mental “implica na criação de dispositivos que ofereçam cuidado em liberdade, com a participação ativa da pessoa em seu processo de tratamento e em sua reinserção social”. A lógica do cuidado em liberdade, defendida pela Reforma Psiquiátrica, busca romper com o paradigma do confinamento, oferecendo uma rede de suporte que vai além da medicação e da internação, e que inclui o apoio psicossocial e o acompanhamento próximo da pessoa no cotidiano.
A Reforma Psiquiátrica não é apenas um movimento de profissionais de saúde, mas envolve toda a sociedade. A construção de uma saúde mental humanizada depende de uma mudança cultural que reconheça as pessoas com transtornos mentais como sujeitos plenos de direitos. Isso inclui a luta contra o estigma e o preconceito que historicamente marginalizaram essas pessoas.
Segundo Birman (2014, p.32), “a transformação na forma de tratar a loucura é também uma transformação na forma de enxergá-la. É preciso que a sociedade como um todo compreenda que as pessoas com sofrimento mental têm direito à dignidade, à inclusão social e ao tratamento em liberdade”. Portanto, a luta pela humanização da saúde mental é uma luta pela construção de uma sociedade mais inclusiva e solidária, onde a diversidade é valorizada e os direitos de todos são respeitados.
A história da loucura no Brasil é marcada por uma transição de práticas excludentes e desumanizantes para um modelo de cuidado pautado nos direitos humanos e na humanização da saúde mental.
A Reforma Psiquiátrica Brasileira foi um marco nesse processo, promovendo a desinstitucionalização e a criação de serviços comunitários que oferecem cuidado em liberdade e com respeito à dignidade das pessoas em sofrimento psíquico. Esse movimento continua a enfrentar desafios, especialmente no que tange à mudança cultural necessária para combater o estigma e o preconceito que ainda cercam a questão da saúde mental.
No entanto, a humanização dos cuidados e a garantia dos direitos das pessoas com transtornos mentais permanecem como princípios fundamentais para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva.
Referências
AMARANTE, P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007.
BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: A psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
DESVIAT, M. A reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011.
FOUCAULT, M. História da Loucura na Idade Clássica. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.
PESSOTI, I. O Homem e a Loucura. São Paulo: Edusp, 1996.
ROTELLI, F. A desinstitucionalização da psiquiatria. São Paulo: Hucitec, 1999.