Máquina de poesia
"Gosto de imaginar que era para escrever cartas a um amor do passado ou poesias que não tinha coragem de mostrar a ninguém."

Máquina de poesia

Dia desses minha parceira Juliana, campeã mundial em achados criativos, presenteou a nossa casa com esta belezura, uma Olivetti Bambina vermelha.Todos da nossa geração temos lembranças afetivas relacionadas às máquinas de escrever - o diploma de datilografia como obrigatório no mercado de trabalho, a dificuldade para apertar as teclas com o mindinho, o "tlim" quando a linha chegava perto do fim... E a raiva quando errávamos? Sim, crianças, não existia a tecla delete. Havia só liquid paper, uma gosma branca que era preciso pincelar em cima do erro.

Na minha infância em Araranguá, sul catarinense, na década de 1980, não tínhamos máquina de escrever em casa. Era caro, ao menos pra gente, e minha mãe demorou um pouco até conseguir comprar uma. Mas pedíamos emprestada a do vizinho, o sr Wilson, que morava sozinho na casa à esquerda da nossa. Guardo a imagem de um homem extremamente solitário, que saía cedo pra trabalhar - era dono da banca de revistas da rodoviária - e voltava à noitinha. Até hoje, quando ouço Eleanor Rigby, dos Beatles, eu o imagino como um dos personagens da canção.

Muitas vezes ficávamos à espreita, esperando o sr Wilson chegar, para pedir a máquina emprestada. Com ela, e depois com a nossa própria, eu e meus irmãos deixávamos a imaginação fluir. Produzíamos nossas próprias "revistas". Nessa época pré-internet e pré-Netflix, cada um de nós criou seu próprio país e personagens como o presidente, o super-herói, o craque de futebol. No meu caso, todos os papeis estavam concentrados no mesmo sujeito, Pel Rico. A gente fazia as bandeiras dos países, fundava clubes de futebol, desenhava os uniformes. Meu país foi batizado de Cravo, o do Marcus era Nascimento e o do Beto, Ilhas Comores. Demorei uns bons anos até descobrir que o espertinho tinha "inventado" um lugar que já existia.

O sr Wilson morreu sem saber o quanto tinha sido importante para fomentar a criatividade naqueles três meninos. Hoje, se me tornei um jornalista que está completando 25 anos de carreira, é em parte pela generosidade do nosso vizinho. Às vezes fico pensando que uso ele daria à máquina. Gosto de imaginar que era para escrever cartas a um amor do passado ou poesias que não tinha coragem de mostrar a ninguém.

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