Maioria não é critério de qualidade!

A democracia é um regime político enfatizado como superior a outros regimes, mas que tem em todos os seus “apoiadores” aquele adágio mitigador: “não é nenhum apanágio!”, “a democracia não é perfeita!”, dentre outros.

De fato, há muitas discussões sobre os “modelos de democracia”, como bem expressou um importante título de livro de um reconhecido autor inglês (David Held, Models of Democracy, Cambridge: Polity Press, 1987) ou a versão para o Brasil do estudo de Arend Lijpart (Modelos de Democracia: desempenho e padrões de governo em 36 países, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003).

O que mais chama a atenção, entretanto, sendo fácil de identificar, é a confusão contida no pensamento de muitas pessoas que entendem a democracia como sendo o regime político em que vale a decisão das “maiorias”.

Na perspectiva destas pessoas, o simples alcance de vantagem quantitativa no total de participantes de uma determinada instância organizacional (qualquer que seja) reflete a pretensão democrática, resultando em que a “voz da maioria” imponha-se “automaticamente” sobre as minorias.

Com esta perspectiva, a democracia deixaria de conter qualquer sentido de superioridade qualitativa, em termos de produção da vida política e social, para simplesmente corresponder a um vetor aparentemente legitimador dos critérios de força. A força seria exercida não de forma despótica, por mera deliberação do exercício de autoridade de uma pessoa incrustada num cargo oficial, mas contaria com o apoio do sentimento predominante na coletividade.

Quem poderia, nestas condições, opor-se a um linchamento público? Para que esperar, na hipótese de acusação de alguém de um crime, que haja um processo investigatório, envolvendo agentes policiais, perícia, ministério público, fases processuais da acusação sob responsabilidade do poder judiciário, sentença, recursos, instâncias recursais, para finalmente declarar o “trânsito em julgado” da sentença condenatória? Forme-se uma maioria nas ruas munida de armas brancas ou não e proceda-se ao linchamento das pessoas, já que a maioria seria considerada critério suficiente para a deliberação democrática.

Quem poderia pretender incriminar o nazismo se uma maioria política formou-se para conceder mandato eletivo àquele partido no Parlamento Alemão e depois à fusão dos cargos de chefe de governo e de chefe de Estado ao seu principal expoente, o senhor Adolf Hitler? Segundo o critério da maioria política, todas as mentiras e as violências empregadas para chegar ao poder e todos os crimes contra a humanidade e contra as nações, incluindo crimes de guerra, do nazismo, estariam perdoados, porque é incontestável que Hitler acedeu ao poder com apoio de maiorias políticas, especialmente obtidas nas eleições de 1933.

No campo da ciência, a argumentação de Thomas Samuel Kuhn (The Structure of Scientific Revolutions, Chicago, 1962) acerca das revoluções científicas, representadas pelo rompimento de paradigmas hegemônicos de interpretação prevalecentes em cada etapa histórica, demonstra que as afirmações científicas baseadas em “imposições” com qual a maioria da audiência concordará não possuem validez, somente sendo aceitável então que tais hegemonias sejam quebradas, que haja “mudanças de paradigmas”. Num difícil debate sobre o sentido do emprego do termo paradigma, o próprio Thomas Kuhn enfatizou que sua única utilidade está em compreender que quando formam-se “concordâncias” e predomínio de interpretações que sequer precisam mais deixar-se debater, é hora de “mudança de paradigmas”. A ciência faz-se pela exposição, pela argumentação racional, pela evidenciação, não por “dogmatizações paradigmáticas” (desculpem brincar com as palavras, mas, sob esse formato, encontrei uma expressão de conteúdo forte e coerente com o ensino de Thomas Kuhn).

Ressalta-se, assim, que maioria, por si só, não corresponde a critério de qualidade para a decisão no campo da política, como também não tem valor no campo da ciência.

Assim, importa aprender que o que se deve destacar, dentre outras características, para que estejamos falando em democracia são:

a) a igualdade perante a lei: não há regime democrático onde a submissão à legalidade não alcança todas as pessoas, em igualdade de condições, independentemente de cargos que ocupem, de propriedades que possuam, de famílias ou de raças de quais descendam, de religiões que professem, de escolaridade que tenham acumulado, de profissões que exerçam;

Mas, ainda mais importante:

b) o controle do poder e da força: este sim é o critério que, na minha compreensão, mais qualifica e testemunha a vigência de um regime democrático, ou seja, um regime político e social em que, em nome da preservação dos direitos humanos, estabelecem-se limites para o emprego do poder e da força contra qualquer pessoa.

Democracia não se faz pela imposição da vontade da maioria contra a minoria, mas pela preservação dos direitos da minoria quando formou-se uma maioria contrária à “minoria”, de modo que a diferença de opiniões e de interesses não se tornem motivos para abusos contra os dissidentes.

A história demonstra que o próprio regime constitucional nasceu para impor limites ao rei da Inglaterra na fixação de tributos aos nobres e aos vassalos, ainda na Idade Média, decretando simultaneamente que o orçamento público fosse objeto de discussão da sociedade e não apenas do rei e de seus subordinados.

O direito administrativo ensina que a autoridade mandatária, sob mandato delegado por voto ou por seleção pública de cargos, com prazo de validade determinado, só pode agir nos termos que a lei aprouver. Assim, por exemplo, um juiz não pode produzir uma sentença judicial em que os fatos narrados não tenham correspondência com uma tipicidade legal previamente elaborada e vigente nem impor sanções cujas previsões legais não existam. Ou, a polícia não pode combater crimes agindo de forma criminosa, porque as sociedades não mantém as forças policiais para instaurar concorrência criminosa com as quadrilhas de criminosos, mas para agir na estrita obediência da lei na prevenção e na investigação dos crimes e na preservação dos direitos de todos os cidadãos à lei.

Então, para reforçar e para encerrar, repetirei uma frase que já utilizei há pouco:

Democracia não se faz pela imposição da vontade da maioria contra a minoria, mas pela preservação dos direitos da minoria quando formou-se uma maioria contrária!



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