Mal-estar global

Mal-estar global

A reunião anual do FMI e Banco mundial, em Marrakech, foi marcada por um tom sombrio. Por um lado, aumentam as tensões geopolíticas, com o conflito no Oriente Médio se somando à guerra no leste da Europa e à competição EUA-China. Por outro, em meio à preocupação com os focos residuais do incêndio inflacionário global, que requer política monetária restritiva em várias economias, a conta da generosidade fiscal dos últimos anos começou a chegar, com impacto relevante no mercado de títulos públicos americanos. Isto, por sua vez, afeta o comportamento de todos os ativos globais.

É curioso notar que as projeções de crescimento apresentadas no Panorama Econômico Mundial, do FMI, não apresentam deterioração marcante em relação aos números divulgados antes da reunião de primavera, em abril. As projeções para a expansão do PIB mundial foram revistas em +0,2p.p. e -0,1p.p. no que toca a 2023 e 2024, respectivamente, para 3,0% e 2,9% – um pouso suave, levando em conta a expansão de 3,5% observada em 2022.

A visão do FMI sobre a economia americana, em particular, foi revista positivamente, com projeções de crescimento de 2,1% e 1,5% em 2023 e 2024, ante 1,6% e 1,1%, anteriormente. Já os prognósticos para o crescimento da economia chinesa sofreram revisão baixista, para ainda invejáveis 5,0% em 2023 e 4,2% em 2024 (5,2% e 4,5% na edição de primavera). Apesar desses números serem razoáveis, ambos membros do G2 global enfrentam importantes desafios, com relevante riscos de baixa. Daí, provavelmente, a malaise que permeou as reuniões.

No caso dos Estados Unidos, depois de muito tempo em que a falta de disciplina fiscal parecia carecer de custo (o que, perversamente, estimulava mais indisciplina), os mercados passaram a cobrar prêmios crescentes para comprar títulos públicos. A taxa do título mais líquido, a Treasury de 10 anos, saiu de 3,8% aa, ao final do segundo trimestre, para 4,6%, no fim de setembro, e está próxima de 4,9% atualmente.

É natural que a trajetória das contas públicas oscile ao longo do ciclo econômico. Em particular, como as receitas tendem a ser mais variáveis do que as despesas, os resultados usualmente pioram nas recessões e melhoram em fases de expansão. No caso dos EUA, contudo, o déficit fiscal descolou do desemprego desde 2015, evidenciando um desvio dessa correlação com o ciclo pela primeira vez desde os anos 1980. As causas provavelmente foram as reduções de receita implementadas na gestão Trump e, mais recentemente e em maior magnitude, os aumentos de gastos realizados durante a administração Biden, no pós-pandemia.

Com isso, o déficit primário tem oscilado entre 3,5% e 4,0% do PIB. Um resultado primário equilibrado é necessário para estabilizar a dívida. Ocorre que, em um ambiente político altamente polarizado, conseguir um ajuste de 4,0p.p. do PIB parece altamente improvável. A propósito, no caso dos EUA, usualmente taxas de crescimento acima das taxas de juros reais têm contribuído de forma mais relevante para melhorar os resultados fiscais e a trajetória da dívida do que medidas de ajuste.

Dado o impasse político e as dinâmicas de taxas de juros e crescimento, bem como, claro, o estoque de dívida precedente, a economia americana enfrenta uma necessidade de financiamento, em 12 meses, equivalente a 74% do PIB, sendo 66% em vencimentos e 8% referente à estimativa de déficit nominal, segundo dados do próprio Tesouro americano.  Tal situação tem levado ao movimento de taxas longas descrito acima, assim como a certo encurtamento de prazos.

Os economistas do Itaú estimam que cada aumento de taxas longas de 1,0p.p. equivale a um ajuste de cerca de 0,75p.p. a 1,0p.p. da taxa de política monetária. Com isso, o aperto de condições financeiras promovido pelo mercado estaria realizando o trabalho do banco central, permitindo, a princípio, que o Fed eventualmente declare seu processo de ajuste encerrado.

Ainda que siga exibindo taxas de crescimento vistosas, que são ainda mais impressionantes porque se trata da segunda maior economia do mundo (ou da maior, dependendo da taxa de câmbio utilizada para comparações internacionais), a China também apresenta desafios de ordem conjuntural e estrutural. Assim como em outras economias, a saída da pandemia, que foi relativamente tardia por lá, levou a uma aceleração da atividade. Mas esse boom mostrou-se efêmero, e a economia passou a perder dinamismo a partir do segundo trimestre. O importante setor imobiliário seguiu (e segue) mostrando sinais de estresse financeiro, e as autoridades tiveram que reagir, com novas rodadas de estímulos, a mais recente anunciada na semana passada.

Os estímulos tendem a limitar, ou até reverter, a sequência de revisões negativas das projeções de crescimento de curto prazo para a economia chinesa. Mas os problemas e riscos baixistas persistem: tendências demográficas, uma potencial retirada do comércio global em decorrência de tensões geopolíticas, possíveis decisões de política econômica que inibam a inovação, novas rodadas de dificuldades ligadas ao setor imobiliário e continuidade da tendência recente de redução do investimento estrangeiro nesse país.

Na próxima semana, o Itaú BBA irá organizar um evento, o Macro Vision 2023, que vai oferecer conteúdo muito especial. Sobre a economia mundial, o foco recairá justamente sobre o G2. Quanto aos Estados Unidos, o evento contará com Richard Clarida, um renomado economista, com longa e bem-sucedida carreira acadêmica, que foi vice-presidente do Fed entre 2018 e 2022. Para falar sobre a China, e com um ponto de vista chinês, haverá um painel com Keyu Jin, professora da London School of Economics, e uma das principais experts sobre a economia chinesa da atualidade. Vale conferir.

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