Medo organizacional, aviões que caem e airbags que não funcionam.
Venho acompanhando a crise na Boeing, que começou com dois acidentes recentes envolvendo o modelo 737 Max. Ocorridos em um intervalo de menos de 5 meses, os desastres mataram 346 pessoas e fizeram com que companhias aéreas proprietárias do modelo o tirassem de circulação imediatamente.
Reportagens recentes conectam as tragédias a uma cultura organizacional problemática. As histórias, pautadas por ex-funcionários, funcionários atuais e consultores que trabalharam de perto com a empresa, descrevem um ambiente em que o foco em lucro e em fazer tudo antes da principal concorrente – a Airbus - ultrapassaram a preocupação com segurança.
Em entrevista à Forbes, Curtis Ewbank, que trabalhou durante cinco anos no desenvolvimento de sistemas para o 737 Max, disse que a empresa escondeu dados cruciais de segurança da EASA, o equivalente europeu da nossa ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil), após encontrar evidências de falhas no autothrottle do modelo, justamente o sistema causador dos dois acidentes.
Ewbank disse ainda à Forbes que comunicou essas evidências de defeitos a um gestor da empresa. Ouviu como resposta “não conte à EASA” e “a Boeing vai resolver o problema”. O funcionário disse ainda que seus colegas da Boeing têm medo de apontar questões de segurança por medo de perderem seus empregos. Jornalistas que tiveram acesso a mensagens internas da organização reforçam a mensagem de Curtis Ewbank, indicando que gestores e executivos pareciam estar tão focados em cortar custos e acelerar a produção que ignoraram engenheiros que se mostraram preocupados com a segurança do 737 Max.
Olhando para o passado recente, há relatos similares de produtos chegando ao mercado com falhas sérias de design e segurança. Em fevereiro de 2014, a GM iniciou um processo de recall de veículos de pequeno porte por um problema que impedia o acionamento dos sistemas de airbag em caso de colisão.
O que começou com o recall de 800 mil unidades acabou envolvendo mais de 30 milhões de veículos. Pior: investigações conectaram essa falha a 124 mortes em acidentes com veículos da empresa. Pior ainda: segundo o New York Times, investigações mostraram que empresa tinha ciência da falha pelo menos desde 2001, quando um relatório de pré-produção de um dos modelos envolvidos nos acidentes indicou que havia problemas com o acionamento dos airbags.
Usei dois casos extremos para ilustrar o quão perigoso é o medo organizacional somado à obsessão com cortes de custos e cumprimento de metas. São casos enormes, tristes, altamente cobertos pela mídia. Nesses casos existe, claro, a falta de decência de um líder que, procurado por um funcionário preocupado, nada faz. Existe também a realidade do compromisso com o bônus e com a adrenalina de lançar algo antes do concorrente serem maiores do que o compromisso em colocar um produto seguro no mercado.
Existe também a realidade de que o medo organizacional que chega a esse ponto é algo que acontece ali, no miúdo do dia a dia (frase da Viviane Mansi) e vai permeando relacionamentos, projetos, entregas. O medo de levantar a mão, perder o emprego e, ainda assim, nada acontecer. Pesquisas indicam que as duas principais razões pelas quais as pessoas não reportam problemas são a crença de que nada será feito e o medo de retaliação.
Para saber mais sobre medo organizacional, recomendo conhecer o trabalho acadêmico da Cynthia Provedel. Ela foi gestora de comunicação em empresas como GPA e Sanofi e, em sua dissertação de mestrado, discorreu sobre o medo organizacional, comunicação interna e diálogo nas organizações. A dissertação dela pode ser lida na íntegra aqui: https://casperlibero.edu.br/wp-content/uploads/2014/02/CYNTHIA-SGANZERLA-PROVEDEL.pdf
Consultora de Comunicação Interna | Internal Communications Manager | Board Member | Palestrante e Mentora | Professora Aberje, FGV, ESPM
4 aOi Bruna, querida, super obrigada pelas reflexões e pelas menções ao meu estudo. Lá se vai um setênio do meu estudo e lembro com clareza de ter escolhido este tema por uma necessidade absurda de demonstrar o impacto do medo organizacional no clima, na cultura, nas decisões organizacionais, na alma das pessoas. Ele paira no ar, é silencioso, vai deixando marcas por onde passa. Um dos medos organizacionais muito comum é o medo de expressar o próprio medo. Que possamos expressar o que nos preocupa, o que nos tira o sono, o que nos coloca em estado de alerta. É preciso autoconsciência pra o enfrentamento do medo. É preciso coragem pra dar voz aos que temem. É preciso alma pra ressignificar o medo. Nesse mundo maluco em que a gente está vivendo, expressar sentimentos é percebido como sinal de fraqueza e o espaço para esse tipo de conteúdo, infelizmente, ainda é escasso nas organizações. Precisamos urgentemente acolher a expressão do medo.e escutar sem julgamentos. Excelente ponto de partida para que as pessoas possam viver sua autenticidade e ter conversas verdadeiramente francas, curadoras e significativas. Isso em 1o lugar, sempre, na minha visão. A vitalidade organizacional - em todos os sentidos - será consequência.
O medo nasce dessa obsessão com cortes de custos e cumprimento de metas/resultados. E, ao final, ele é o responsável por causar exatamente o oposto (como nos casos que você citou), sob o risco de gerar danos financeiros irreparáveis para a própria empresa. Que lógica maluca! Em casos mais próximos a nós, em que o medo causa consequências bem menos catastróficas (como aqueles que não envolvem a segurança ou vida de pessoas), quantos efeitos maléficos não estão sendo calculados agora e poderão ser vistos em um futuro breve, com consequências cruciais para o negócio? Me parece que olhar fixamente apenas para os números (leia-se também pessoas = números), já não é a melhor estratégia há um bom tempo... Bruna, obrigada mais uma vez por compartilhar suas reflexões!
Economia Comportamental | Psicologia do Consumidor | Ciências Comportamentais Aplicadas | Processos decisórios
4 aCorrendo o risco de falar uma barbaridade, acredito que, nesses casos, deveria haver uma discussão entre medo organizacional e negligência. Parece-me que técnicos que não manifestam uma objeção a um projeto fazem um cálculo sobre o risco de algo dar errado. A pessoa pensa "melhor eu não falar nada e manter meu emprego, afinal, a chance de acontecer um acidente é pequena". Porém, algumas vezes, eles acontecem.
Coordenadora de Comunicação para Yara Industrial Solutions
4 aExcelente reflexão, Bruna! Pelo visto também temos uma situação parecida aqui no Brasil com a Vale e o acidente em Brumadinho. E todas empresas que quando vistas de fora, aparentavam ter uma cultura bem consolidada, não?