Mindset: Charlatanismo ou Ingenuidade?

Nos últimos 20 anos nós observamos uma explosão de crescimento da indústria da auto ajuda. A idéia de ter autores e profissionais que vendem uma solução imperdível para o seu desenvolvimento pessoal começou a se tornar cada vez mais aceitável.

No meu artigo "nem vuca nem bani" eu falei sobre como nós temos uma necessidade incessante de utilizar termos sem questionar a origem e as correntes de pensamento que giram em torno dessas palavrinhas descoladas que estão presentes no nosso dia a dia de consultores, facilitadores, designers e etc.

Mas há um termo em especial que é provavelmente um daqueles que são utilizados sem o menor pudor. Sim minha gente, estou falando dessa palavrinha maravilhosa que você provavelmente já viu no Linkedin ao menos umas 3 vezes só hoje... o tal do mindset.

Esta palavrinha que vem do inglês assume diferentes significados em contextos variados mas basicamente quer dizer "mentalidade". Mudar seu mindset trata-se basicamente de mudar a sua perspectiva sobre algo ou simplesmente a forma como você pensa. Ou seja, tudo isso se refere à mentalidade das pessoas.

Hoje é comum você encontrar profissionais da área de recursos humanos, design organizacional, metodologias ágeis, facilitadores e coaches resumindo todos os nossos desafios do século 21 a uma questão de mindset.

Seus problemas acabaram

Sua empresa está passando por dificuldades? Mude o seu mindset.

Você não tá conseguindo encontrar o trabalho dos seus sonhos? Mude o seu mindset.

As mulheres não te acham atraente? Mude o seu mindset. Você é pobre e não consegue sair da miséria? Mude o seu mindset. Você não tem criatividade para gerar idéias inovadoras? Mude o seu mindset.

Não consegue ser mais produtivo? Mude o seu mindset.

Tá deprimido? Mude seu mindset.

Esta lista poderia seguir infinitamente. A resposta pra qualquer coisa é mudar a sua mentalidade. Os grandes problemas do mundo hoje se resumem a uma questão de mindset. Isso está errado?

Não necessariamente. De fato nós vivemos uma crise de percepção em vários sentidos e isso envolve uma questão de mentalidade sim. Mas resumir tudo a uma questão de mentalidade como se o sucesso de uma pessoa dependesse apenas da mentalidade da mesma é no mínimo ingênuo.

Esse papo de mindset ganhou bastante força com o livro da Dra. Carol Dweck chamado Mindset: A nova Psicologia do Sucesso, publicado em 2006.

Neste livro a autora divide o mundo em dois tipos de pessoas: as que possuem um mindset fixo e as que possuem um mindset de crescimento.

Quem tem um mindset fixo acredita que as suas habilidades e a forma como olha para o mundo são imutáveis. É o tipo de gente que é 8 ou 80. Não acreditam que podem se adaptar ao meio e serão sempre escravas das suas crenças limitantes.

Quem tem um mindset de crescimento vê as dificuldades e obstáculos como uma oportunidade de desenvolvimento. São pessoas altamente esforçadas e acreditam no trabalho duro e no mérito.

A autora não vai necessariamente colocar as pessoas em caixinhas dizendo que estamos restritos a um tipo de mindset mas vai enfatizar que o mindset de crescimento é aquele que vai nos ajudar a superar os obstáculos em nosso caminho.

O problema da psicologização da realidade

Esse tipo de abordagem é interessante porque se uma pessoa for exposta a esse tipo de idéia no momento certo elas podem se sentir incrivelmente motivadas para de fato mudar alguma coisa na sua percepção e forma de ver o mundo. O problema é que essa ideia de que tudo depende de uma questão de mentalidade acaba ignorando inúmeras facetas da nossa realidade.

Essas idéias se mostraram bastante presentes na indústria do coaching, da auto-ajuda e nas falas de terapêutas que se dizem "holísticos". Esses conceitos rapidamente se expandiram para diversos setores da nossa sociedade: saúde mental, educação, gestão e administração, esporte, música e a lista continua...

Vou listar aqui os 3 maiores problemas acarretados com essa abordagem orientada a mindset.

1. A questão da meritocracia

Apostar em uma cultura que prega a idéia de que o sucesso absoluto só depende de você e do seu esforço é completamenta meritocrática. Esta abordagem ignora que as pessoas vivem em contextos diferentes, possuem personalidades diferentes e que nem tudo parte só do indivíduo. Este invidivíduo está dentro de um contexto, de um país, de uma cultura.

Se você acha que uma pessoa que nasce pobre numa favela possui as mesmas chances que uma pessoa que nasce em uma família rica há um problema muito sério a ser discutido aqui.

Como poderíamos dizer para uma criança na síria que assistiu os seus pais morrerem bombardeados que ela só precisa desenvolver um mindset de crescimento para superar esses problemas?

Não podemos. Isso é uma irresponsabilidade que geralmente parte de neo liberalistas que querem justificar as atrocidades do nosso sistema econômico e passar o pano em questões de racismo, desigualdade social e igualdade de gênero.

1. A simplificação exagerada da vida

O ser humano enquanto indivíduo já é deveras complexo. Temos um corpo emocional altamente volátil, hormônios, crenças, valores e um tal de inconsciente que até hoje ciência nenhuma consegue de fato explicar. A gente sabe que existe um inconsciente psíquico mas o nosso conhecimento do assunto para por aí mesmo.

A aposta do mundo mágico dos coaches é na idéia de que nós somos os senhores do nosso próprio destino e tudo depende de nós pra acontecer. Não existem fatores externos, pandemias, distúrbios psíquicos e emocionais e coisa nenhuma. É tudo uma questão de mindset.

Um mendigo só é mendigo porque tem preguiça de trabalhar. Você não viu aquele cara que foi dar palestra em Harvard porque subiu na vida vendendo água no semáforo?

Essa cultura do mindset aposta unicamente na objetividade do ser humano. Mas o ser humano enquanto indivíduo é altamente subjetivo e intersubjetivo. Parece que essa visão de mundo simplesmente ignora o contexto em que esses indivíduos estão inseridos e generalizam uma abordagem que deveria funcionar para todos.

3. A alienação das emoções e complexos psicológicos

Especialmente no Brasil se tornou muito comum encontrar esse tipo de abordagem em que as pessoas acham que depressão é frescura e ansiedade é... Adivinha! Um problema de mindset.

Esta abordagem reduz os inúmeros complexos que habitam a psique a uma simples questão de mentalidade. Claro que há também uma questão de "mindset" envolvida nesses problemas gente. Mas não dá pra gente resumir tudo a isso. E saber que isso é uma questão de "mindset" não vai resolver o problema de ninguém. Não estou aqui pra defender a psicoterapia ou coisa parecida. Mas é importante reconhecer que seja lá qual for a sua preferência de abordagem psicológica os seres humanos não são divididos em apenas 2 tipos de pessoas com um mindset fixo e de crescimento e nós não podemos reduzir todos os problemas mentais a uma simples questão de mentalidade.

Se fosse assim as escolas de psicologia já não existiam mais, nós não tínhamos 800mil pessoas a tirarem suas próprias vidas todo ano e todo mundo seria feliz.

Charlatanismo ou Ingenuidade?

Nós vivemos o antropoceno em plena era da informação. É difícil compreender de onde surgem todas essas vertentes e o que cada uma dessas abordagens implicam. Mais uma vez quero ressaltar que não tenho o objetivo de atacar ninguém com este artigo. Meu interesse com esta proposta é apenas estimular o senso crítico acerca dos jargões que utilizamos no dia a dia para falar sobre questões absolutamente relevantes com uma abordagem simplista e leviana.

A nossa mentalidade para com a vida e com os problemas que lidamos em nosso dia a dia é algo importante a ser considerado. Sim, nós podemos cultivar um "mindset" de crescimento e isso provavemente nos fará bem. Mas como o velho Freud já dizia... Nós não somos senhores da nossa própria casa. Nossos hábitos, traumas e costumes se manifestam a partir do inconsciente o tempo todo.

Portanto, convido vocês a mudar esse "mindset" de mindset. Esse papo já deu o que tinha que dar e hoje temos uma explosão de coaches que dizem todos os tipos de asneiras fazendo uso dessa filosofia simplista. Como se não bastasse reduzir a complexidade do ser humao a uma simples questão de mentalidade, ainda há um abuso de conceitos da teoria da gestão, física quântica, filosofias orientais e do construtivismo exarcebado nesse discurso corriqueiro da indústria da auto ajuda.

Nós podemos sim melhorar a nossa qualidade de vida cultivando uma visão de mundo sistêmica e que busca ver o copo meio cheio. Agora dizer que isso é tudo o que precisamos para transformar a nossa realidade é simplesmente terrível.

Sem falar da irresponsabilidade de alguns profissionais nesta área que assumem casos de depressão e outras nuances que são objeto de estudo de áreas especializadas como a psicologia clínica, psiquiatria e ciências sociais.

Isto não quer dizer que não existam coaches que estão cientes das limitações desse discurso simplista e buscam propor um diálogo com as diversas áreas do saber que são necessárias para navegar a complexidade da vida. Se você é uma dessas pessoas que propagam este tipo de abordagem pare e pense. Pesquise, estude a história da psicologia e das ciências sociais. Entenda que a vida não é preto e branco e o buraco é bem mais embaixo.

Se você é um consultor e utiliza este tipo de jargão para expressar nuances do seu trabalho, tenha em mente que ao fazer isso você dá força para este movimento.

Para finalizar, deixo aqui algumas sugestões de palavras alternativas que podem ser utilizadas para descrever a idéia de mindset em variados contextos:

• Mentalidade
• Visão de Mundo
• Abordagem
• Perspectiva
• Forma de agir
• Linha de pensamento

E imagino que tenha muito mais... Me ajudem a complementar essa lista pra gente oferecer opções o suficiente para que não tenhamos que recorrer a um clássico jargão da indústria do coaching e auto ajuda para falar de questões básicas. 🙂