Mona Lisa e a baixa renda
Em 1990, quando liderava os estudos de baixa renda para a Unilever, eu estava em uma favela nos arredores de Fortaleza, em uma comunidade pequena e extremamente pobre, com ruas de terra e casas de pau a pique (suas paredes são painéis de bambus entrelaçados preenchidos com barro).
Estava em um pequeno comércio que vendia poucos produtos, todos itens básicos. Ovos, sabão em pedra, sabão em pó, café e alguma outra coisa. Eu entrevistava a dona desse estabelecimento, quando de repente ela parou de falar comigo, olhou para a sua filha, uma menina pequena e franzina e disse: ”Mona Lisa, minha filha, pare de roer a parede.” Imediatamente Mona Lisa afastou o rosto da parede, fechou a boca e saiu correndo em direção à rua.
Levei um tempo para me recompor e esse momento ficou gravado para sempre em minha memória. Havia nele um misto de poesia e pesar. O carinho materno, o tom de voz da mãe e a escolha de um nome tão especial para a filha contrastavam com a dureza da carência de recursos revelada no barro da parede e na subnutrição da pequena Mona Lisa que sofria de geofagia, reflexo da falta de minerais no organismo.
Acredito que muitos que estão lendo este breve artigo não acompanharam de perto a jornada que a baixa renda percorreu nos últimos 30 anos no Brasil. Pretendo com este, dividir alguns insights e ajudar o leitor a ter um melhor entendimento dessa população que vive tão perto e ao mesmo tempo tão distante de nosso cotidiano.
“Sou pobre, mas sou limpo.”
No início dos anos 90 a baixa renda, constituída pelas classes D e E somadas, era a maioria da população brasileira. Essa população habitava cortiços no centro das grandes metrópoles, nas favelas localizadas nos arredores das zonas urbanas ou viviam isoladas nas zonas rurais. Com a pouca renda desgastada pela inflação galopante, o seu poder de compra era extremamente limitado e garantia o mínimo para sobreviver. O único luxo que as donas de casa dessa classe tinham era a compra de um pacote de OMO 500 gramas. Tido como um “pó mágico”, era usado no último molho das roupas para dar um pouco de perfume e brancura, mascarando assim, o amarelado e o cheiro característico dos sabões em barra de baixa qualidade. Dessa forma elas davam uma dose extra de carinho à família, confirmando a máxima popular – “Sou pobre, mas sou limpo”.
“Olha o frango, tá um real.”
O Plano Real implementado em 1994 reduz a inflação de 46,7 % ao mês para 6.4 % ao ano. A estabilização da moeda tem um impacto imediato na população das classes D e E. De um momento para o outro, centavos passaram a ter algum valor e economizar passou a ser um plano possível. As mudanças nos hábitos de consumo começaram a aparecer. Primeiro os ovos, que antes chegavam à mesa uma ou no máximo duas vezes por semana, passam a fazer parte do dia a dia. Em seguida surgem as mortadelas vendidas em pedaços que são rapidamente substituídas pelo “frango a R$ 1,00 o quilo”. Finalmente a proteína integrava o cardápio dos vulneráveis. Mona Lisa não vai mais roer a parede.
Três desejos realizados: o Pré-pago, o Tanquinho e a Beliche
Depois do acesso às proteínas na alimentação, começa a fase de integração à sociedade e a baixa renda dá um salto de tecnologia. Quem nunca havia tido telefone fixo agora acessa ao pré-pago e o celular passa a conectar a todos. Tenho a lembrança nítida da felicidade no rosto das pessoas que carregavam o pré-pago, muitas vezes descarregado, preso na cintura. Na sequência é a vez dos azulejos para as partes molhadas da casa e o chão de cimento recebe revestimento. Um novo cômodo é construído na casa e surge o “puxadinho”. Agora as crianças têm seu quarto e o casal passa a ter a sua intimidade preservada. O crediário das Casas Bahia dá outra configuração para os lares que passam a ter uma televisão em cores, uma máquina de lavar “Tanquinho”, um aparelho de som e um sofá. Com o crediário, as famílias podem comprar um beliche por parcelas de R$ 20,00 ao mês e, finalmente, cada criança tem a sua própria cama. Confortos antes nunca imaginados.
“Meu filho faz faculdade e tem carteira assinada”
Em 2004, com o crescimento da economia brasileira, surgem novos empregos e possibilidades. Começa o maior movimento migratório do Brasil, a travessia da classe D em direção a classe C. Essa mobilização social permite que as classes D e E consigam melhores empregos e melhores salários. São abertas milhares de vagas nos “call centers” e o crescimento do mercado de serviços oferece muitas oportunidades. O filho da empregada doméstica agora estuda, faz faculdade e vira doutor. Um sonho impossível se torna realidade, as Mona Lisas têm carteira assinada e um canudo da faculdade! Em 2014 uma pesquisa reveladora conduzida pelo Instituto Data Popular com o apoio da C.U.F.A desmistifica a favela. O digital entra na favela, a favela tem autoestima e orgulho. A favela vira comunidade. Mas o alto custo urbano mantém a nova classe C na periferia.
Deterioração dos sonhos, o susto dos juros do cartão de credito
Se em 2003 a classe D e E somavam 54% da população brasileira, em 2018 a participação havia sido reduzida para 30%, enquanto a classe C saiu de 37% para 55% no mesmo período. O progresso da classe D e E no Brasil dos últimos 30 anos é indiscutível, mas esse crescimento começou a se deteriorar. Os juros das dívidas feitas nos cartões de crédito colocaram a classe C e D contra a parede, que começa a controlar despesas, reduzir gastos, cortar pequenos luxos. Queda de repasses do governo ao ensino superior reduz a possibilidade de um futuro melhor. E o desemprego tem persistido nos últimos anos. Em 2020 a crise do Covid já encontra a população de baixa renda fragilizada.
Neste último domingo, o Estado de São Paulo trouxe na capa a manchete – “Covid empurra desempregados para a rua”. O texto era ilustrado por essa foto magnífica do Tiago Queiroz que usei no artigo. Segundo a matéria, a empregada doméstica Alessandra Rodrigues de 42 anos perdeu o seu emprego, ficou sem condições para pagar o aluguel e foi despejada. Sozinha, apenas com a filha Luana de 4 anos, ela teve que procurar abrigo em uma ocupação urbana. Como Mona Lisa, Luana está suavemente envolvida pelo carinho e pelo amor da mãe, contrapondo com a dureza da parede rebocada, a infiltração nas paredes e a pobreza do mobiliário, tal como as casas de pau a pique das favelas do Nordeste em 1990.
Espero que essa foto não seja o fechamento de um ciclo. É dever de todos, representando as marcas nas quais estamos inseridos, ou individualmente, reagir às crises que têm acometido o Brasil e trabalhar (muito), para garantir que Mona Lisas e Luanas sejam lembranças distantes em nossa história.
Auditoria Interna | Change Management | Agile Master
4 aMuito bom o artigo Laercio Cardoso! Me fez lembrar muito os insights e cases que nos trazia para as aulas de gestão de marketing. Abraços!
Fundador e CEO da MOTIVARE | Autor do livro “Marketing sem blá-blá-blá: inspirações para transformação cultural na era do propósito”
4 a👊🏻
Diretora Senior de Recursos Humanos I Senior Human Resources Director
4 aBreve e precisa retrospectiva. Obrigada
Gerente Executiva FP&A| Executiva Financeira | Planejamento Financeiro | Planejamento estratégico | Finanças
4 aLaercio otimo texto e em vários momentos me vi nele e chorei! Chorei muito! Morava em uma casa ainda que de tijolo, mas dividida pelo guarda roupa e assim podiamos ter 2 comodos (cozinha e quarto) e o banheiro do lado de fora. Depois de anos...meus pais que batalharam muito compraram a famosa beliche no caso era triliche para os 3 filhos. Comecei a trabalhar com 15 anos e nunca parei... fiz faculdade ( nao foi a melhor, mas a que eu podia pagar) e hoje estou nos 5% da população que ganha mais de 10salarios minimos e posso dar muito conforto para minha familia e ajudo a todos que eu posso.
SVP, CFO MSC Cruises USA
4 aParabéns Laércio! Como disse o Waldemar, tenho uma lembrança e um exemplo incrível dos estudos de consumidores que tive a oportunidade de participar com você no começo da minha carreira na Unilever. Anos depois quando estive no Cedep/Insead tive um grande orgulho de ver o seu business case. Grande abraço!