A Morte
Relembrando um texto que escrevi há 2 anos (por favor, não pensem que estou a morrer... ;) )
A MORTE
A morte é um tema tabu em quase todas as civilizações. Raramente ouvimos, ou lemos, alguém discorrer de um modo impessoal, objectivo e analítico acerca da morte. Seja da morte conceito abstracto, seja da morte de alguém, seja, ainda menos, da perspectiva da sua própria morte.
Alguns filósofos, alguns taumaturgos, doentes em estado terminal, idosos em fase de auto piedade, desesperados em crise de chantagem emocional, amantes desiludidos, santas saudosas do seu deus, falam da morte quase sempre num tom apologético, angustiado, anelante, desesperado, receoso, desafiante ou ameaçador.
Nunca, ou quase nunca, de um modo objectivo e desapaixonado, suficientemente distante para ser imparcial.
A morte redime os maus, branqueia as atitudes, sublima os vícios, exalta as virtudes, perdoa os defeitos, faz esquecer desamores e contendas.
Raramente é considerada “justa”, “esperada”, “benéfica”, mesmo nos casos em que como disse o poeta “antes a morte que tal sorte”.
A morte é um estado que não pertence a quem morre mas a quem lhe sobrevive, não a quem abala, mas a quem fica.
A morte é sempre considerada o oposto da vida, sendo que a vida é de difícil definição.
Viver é mais do que ter um cérebro funcional, um coração que bate, um sangue que circula, células que se reproduzem. A morte será muito mais do que o oposto de tudo isto.
Realidade a prazo, indesmentível para todos nós, situação final para que tendem todas as existências humanas como as conhecemos, interrupção irremediável do nosso trajecto de vida, encontra-se, no entanto, as mais das vezes, escondida num recanto obscuro do nosso subconsciente de onde raramente sai, salvo em condições de conflito existencial, ou perigo desmesurado.
Não fora a irremediável e ígnea marca com que nascemos e que nos obriga, compulsoriamente, a preservar a própria vida e nos sustenta a pulsão de espalhar os genes e a situação seria, possivelmente, bem diversa. Tornaria mais fácil analisar as situações e decidir quando e onde seria a morte mais misericordiosa, ou mesmo mais desejável, do que a vida. Libertar-nos-ia para filosofar acerca da nossa trajectória pelos caminhos do mundo como o fazemos acerca do trajecto do sol nos céus desde que desponta no horizonte matinal até que se recolhe ao fim do dia. Celebraríamos os últimos instantes de quem parte com a tristeza da iminente ausência mas sem a carga negativa da inelutável tragédia que nos faz relembrar a nossa própria precariedade.
A iminência da morte, se apercebida, desencadeia um compulsório julgamento de todos os nossos actos passados e um balanço apressado do nosso “deve” e “haver” numa atitude esperançada de que o saldo final nos garanta a admiração dos outros e a nossa auto satisfação.
É o tempo de “arrepender-se” em atitude induzida pela judaico-cristã noção de castigo e recompensa que obriga a que se procure, se não o caminho quotidiano da rectidão, da solidariedade e do amor, pelo menos o da auto-contrição penitencial como meio de obter ilusória passagem para as delícias da paz eterna.
Como se fosse possível em segundos desfazer o mal feito durante toda uma vida, mesmo que houvesse julgamento, castigo e recompensa para além da consciência de cada qual.
Raramente a morte é objecto de tratamento justo e imparcial.
Raramente somos capazes de avaliação justa e imparcial mesmo das coisas, situações e pessoas que nos são prazenteiras. Muito menos das que se configuram como ameaças letais e indutoras de terrores para lá de irracionais.
É assim a vida. É assim a morte.