MOTOQUEIRA
Todos bebericando coca-cola. Entre uma dentada e outra no bolo de chocolate com glacê, o papo rolando solto. O glacê branqueando o canto da boca, escapando do papel ou dedo que servem como guardanapo. O bolo é para o coordenador da repartição, que entra em férias.
O clima está quente no minúsculo espaço. No recinto, o acre cheiro da transpiração dos corpos suados invade as narinas, mesmo aquelas adaptadas às condições mais escassas quanto à higiene. A temperatura ambiente é em parte culpada pelo desconforto.
“A culpa é dos cabeçudos que deixavam a porta aberta com o ar condicionado ligado,” desabafou um dos funcionários. “Agora estamos todos ferrados, com o aparelho pifado.”
“A encomenda chegou,” disse a copeira no pé do ouvido da moça. Ambas saíram da comemoraçãozinha e foram para a sala de trabalho. A vendedora retirou de dentro do saco a jaqueta de couro preta. A analista pegou a jaqueta e, logo após ter despido o jaleco branco, vestiu a peça. Ficou legal, justinha, sob medida, palavras da vendedora, naturalmente inclinada em realçar os pontos ótimos do vestuário. A analista havia gostado do corte, do tamanho, do efeito que a jaqueta desenhava em seu corpo.
Era uma jaqueta de motoqueira.
A analista em computação havia recentemente sido aprovada em concurso público e admitida no funcionalismo para trabalhar no CTA em São José dos Campos. O problema é que residia em São Sebastião. Por necessidade, ela vinha de moto para o trabalho pelo menos três dias na semana.
“O carro me comeria mais de ¼ do salário, não tô podendo,” a moça dizia para si para justificar a cansativa descida e subida da Serra diariamente.
É a mulher conquistando espaço. Ela entra no CTA às 13 horas e sai às 22 horas, perfazendo 8 horas de trabalho. Essa rotina é para quebrar muita gente. Imagina se ainda tiver que dar aula na parte da manhã. A analista, antes de conquistar vaga no serviço público, tinha que ganhar a vida, daí ter optado pela educação. Há quatro anos leciona informática para alunos do ensino técnico em São Sebastião.
É a nova safra de mulher, adaptada às exigências do século 21. Nada de anormal, quando se vê a mulher presidir o Brasil após 500 anos de exclusividade masculina.
O relógio da repartição soa 17 horas. A maioria dos funcionários deixa a instituição. Às 19h, mais gente vai descansar. A escuridão caia completamente. Ela acompanha a troca de plantão. Enquanto um ou outro se aproxima para contar novidade, para exigir este ou aquele encaminhamento, o tempo vai passando.
Às 22h, a moça passa pela portaria. No pátio, do lado de fora da unidade, abre o bagageiro da moto. Coloca o capacete na cabeça. Veste a jaqueta antiga. A nova fica para outro dia. Liga a moto. E segue caminho para casa.
Percorre a Rodovia dos Tamoios. O vento, a pista, as luzes dos carros são imagens que tem como companhia diante da imensa rodovia. Os faróis altos na contramão perturbam seus olhos. As luzes de sua moto incidem nas placas. Domina a moto, pois sabe que disso depende a vida. Trechos mais perigosos, destaque para a altura de Paraibuna. Neste ano, a rodovia foi apontada como a que mais mata no Estado de São Paulo.
A analista carrega instrumento de proteção, na tentativa de se defender contra possível atentado de machos famintos. Dirigir moto na rodovia às altas horas da noite é perigo para qualquer pessoa. Como não seria para uma moça cuja roupa de motoqueira está longe de ocultar o corpo atraente?
Na quinta e sexta-feira, a analista costuma vir de carro. Quem a vê guiando o Scenic lhe classifica como dondoca, certinha. Quando a avistam em cima da moto, classificam-na de radical, intrépida.
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