O autoritarismo vence a democracia pelo cansaço

Se você já conviveu com alguém de tendências agressivas, e não tem esse perfil, talvez tenha reparado na enorme energia dessas pessoas para as disputas. É provável que lhe tenha ocorrido mais de uma vez buscar a conciliação, até mesmo pedindo perdão, sabendo que não fez nada de errado, apenas por estar exausto(a). A agressividade contém uma energia muito mais intensa do que a calma. Por isso, muitas vezes, ela vence pelo cansaço. Até que a pessoa calma se canse de forma definitiva, desista daquele investimento, e se retire da relação. Essa é também a dinâmica no plano da política, que nada mais é do que a projeção dos afetos humanos numa escala coletiva. Neste momento em que a democracia está sob ataque em diversas partes do mundo, incluindo o Brasil, é preciso estar atento a esse funcionamento.

Normalmente, as polêmicas, os ataques, as ameaças não têm um impacto tão amplo, mesmo partindo de alguma personagem pública importante, porque a maioria das pessoas está ocupada com seus afazeres: trabalhar, estudar, cuidar dos filhos, dos idosos, da casa, divertir-se, praticar exercícios... A estridência nas redes sociais e no noticiário é notada, mas em boa parte ignorada, como um ruído incômodo porém irrelevante. Não é assim que estamos agora. A maioria das pessoas está em casa, diante do celular, da TV e do computador. Torna-se mais difícil ignorar esse barulho.

Entretanto, como quando lidamos pessoalmente com alguém agressivo, também no campo da política não temos repertório que nos indique como responder. Ficamos perplexos, torcendo para que aquele surto termine, para que a pessoa se canse e tudo volte ao normal. Para tanto, nos mostramos sempre dispostos a perdoar, a esquecer, na esperança de que essa disposição sirva de incentivo ao fim do surto de agressividade, ofereça uma saída honrosa, e a pessoa se reintegre ao que consideramos ser a vida em sociedade. Mas, por mais sincera que seja essa intenção, não é isso o que a nossa silenciosa perplexidade produz. Muitas vezes se dá o inverso. Algo dentro do agressivo pede uma reação do agredido. E, se não há reação, se não há limites, a agressividade cresce.

A resposta, então, parece simples: é preciso impor limites. Sim. Mas, como? Se a colocação do limite não for suficientemente firme e convincente, ela apenas serve de combustível, ou de pretexto, para a agressividade. E, quando vemos, fomos arrastados para uma briga, para a qual não estamos preparados. Nossa chance de vencer é muito remota.

Nos países cujas democracias foram destruídas por dentro, como Venezuela, Bolívia, Turquia, Rússia e Hungria, líderes oposicionistas, analistas, jornalistas e a população em geral assistiram a esse processo com um sentimento de incredulidade. Não parece real. Parece mais um pesadelo. Já em ditaduras consolidadas há mais tempo, como Egito, Líbia, Síria, Cuba, Irã, Arábia Saudita, Coreia do Norte, China e Zimbábue, o sentimento é mais de resignação perante uma triste normalidade. Com o tempo, a incredulidade no primeiro grupo vai dando lugar a essa acomodação. É quando o país migra do primeiro para o segundo grupo.

O que fazer para conter esse processo? Em primeiro lugar, é preciso descansar na razão. A raiva e o pânico nos levam a atitudes que favorecem quem está com a iniciativa da agressividade. É preciso se manter diferente deles. Não uma diferença de superioridade, porque essa atitude em si mesma já é agressiva. Mas a diferença da sobriedade. Essa é uma imagem boa: como uma pessoa sóbria lida com um bêbado? Com cautelas, mas sem medo; com firmeza, mas sem agressividade.

Países são sempre maiores que líderes estridentes e seus seguidores. É preciso encontrar uma terceira opção que não seja a perplexidade silenciosa nem a reação impulsiva. Uma firmeza baseada na clareza dos limites e dos objetivos é a chave. Traduzindo isso para a relação entre as instituições, é preciso que em algum plano tácito elas estejam unidas. As bases desse plano são as leis e a clareza sobre o papel de cada uma. Todos os seres humanos têm as suas vaidades e fragilidades. Mas a perplexidade diante do exagero de quem está com a iniciativa agressiva deve servir de ponto de partida para um esforço de atitudes adultas, ou seja, firmes, calmas e coerentes.

Na Venezuela, Bolívia, Turquia, Rússia e Hungria, a Justiça, o Ministério Público, o Parlamento e a imprensa foram capturados. É fundamental impor os limites firmes antes que isso aconteça. Porque é por meio dessas instituições, que representam os freios e contrapesos, que se protege a democracia. Não se trata de privar o Executivo de governar. Ao contrário. É até desejável que o governo tenha uma maioria operacional no Parlamento, para que possa negociar e aprovar os projetos para os quais foi legitimamente eleito. Assim diminui o incentivo para uma saída autoritária. Mas precisa ser uma maioria comprometida com a democracia, e não conivente com os abusos.

Em geral não se pode contar com as Forças Armadas como garantes da democracia. Por mais que haja dentro delas lideranças legalistas, a prioridade da corporação é essencialmente a preservação de sua unidade. No momento crucial, esse apelo existencial pode falar mais alto que o apego à democracia. Aconteceu nos países citados, e também no Brasil de 1964 ou no Peru de 1992, entre tantos outros exemplos.

É por isso que falo da necessidade de clareza dos papéis, para não dar combustível e nem espaço a uma escalada autoritária. Mesmo de posse dessa lucidez, e talvez exatamente graças a ela, é preciso reconhecer que as chances de preservar a democracia não são grandes. Não há folga. A democracia tem uma fragilidade intrínseca: ela é feita de limites. Essa é a sua matéria-prima. Portanto, não dispõe da amplitude de recursos de quem nutre intenções autoritárias. É um trabalho grande proteger a democracia. E sem garantias de êxito. Mas é preciso fazê-lo. Todas as alternativas são muito piores.

Publicado originalmente no meu blog no Estadão.

Lorena Campos

Journalist and Media Producer

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Texto excelente, Lourival! Reflexão e paralelos importantíssimos.

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