O CANTO DA MADEIRA: Um encontro entre Cultura, Gestão de Riscos e Ciência de Dados.
Um Documentário sobre Cultura e Resiliência
Assisti a um dos documentários mais belos, profundos e necessários ao nosso país na atualidade. Trata-se da produção intitulada Fenix: o vôo de Davi, com direção e roteiro de Vinícius Dônola, João Rocha e Roberta Salomone e co-produção de Globoplay e Globonews.
Nele, o bombeiro, músico e luthier Davi Lopes mostra, de forma quase poética, como foi possível transmutar parte da tragédia ocorrida em setembro de 2018, no Museu Nacional, fundado em 1818 por Don João VI e situado no Rio de Janeiro – RJ. Um incêndio de grandes proporções destruiu cerca de 20 milhões de itens do seu acervo e grande parte da bela edificação que o abrigava, conhecida como Palácio São Cristóvão, onde ocorreram importantes episódios da nossa história, a exemplo da Sessão do Conselho de Estado de 1822, tendo à frente a Princesa-Regente Leopoldina. Lá se foram mais um pedaço da nossa história, do patrimônio arquitetônico brasileiro, além de muitos empregos e pesquisas, entre outras perdas, muitas delas irreparáveis.
Lá se foram mais um pedaço da nossa história, do patrimônio arquitetônico brasileiro, além de muitos empregos e pesquisas, entre outras perdas, muitas delas irreparáveis.
No entanto, movido por um misto de amores (pelo museu, devido à sua história de vida, pela música e pelas madeiras) e competências, Davi garimpou, em uma operação de rescaldo da comoção gerada pelo evento, pedaços de madeiras nobres queimadas que, sob os seus cuidados e procedimentos simples, logo se revelavam intactas, “vivas”.
Dotado de grande simplicidade, Davi teve o intuito de ressignificar a morte ali presente, fazendo renascer parte da nossa cultura, além de honrar aquelas belas madeiras que, não fosse por ele, seriam simplesmente descartadas. Pedaços de portas, vigas e outros escombros, tornaram-se matéria-prima para a construção de instrumentos musicais (dois violões, um bandolim, um cavaquinho e um violino), pelas mãos do luthier Davi.
Mesmo quando resgatadas de escombros, as madeiras cantam para Davi.
Foi um trabalho manual primoroso, calmo (respeitando o tempo das madeiras, para que se adaptassem aos moldes) e de extrema qualidade, comprovada por grandes nomes da música nacional como: Gilberto Gil, Paulinho Moska e Paulinho da Viola, que dispensam apresentações ao grande público, testaram seus violões; Hamilton de Holanda, considerado o maior bandolinista brasileiro; Nilze Carvalho, cantora, compositora e instrumentista, que apreciou o cavaquinho e; Felipe Prazeres, experiente violinista e spalla das Orquestras Petrobras Sinfônica (OPES) e Sinfônica da UFRJ (onde também atua como maestro).
Assim, novas emoções foram geradas a partir do feedback desses músicos que, como disse Davi em certo momento do documentário, compensou os muitos nãos ouvidos ao longo de sua trajetória.
Em mim, mera espectadora, foram geradas emoções profundas, que começaram com a tristeza motivada pelas primeiras imagens do documentário, relativas ao incêndio, mas que logo se transformaram em admiração, encantamento e esperança.
Além disso, o documentário evocou inúmeras reflexões, que construíram pontes com alguns dos temas aos quais venho me dedicando em minhas atividades profissionais.
Histórias e Reflexões sobre Gestão de Riscos
Começo com a Gestão de Projetos, tema presente nas orientações dos meus alunos do MBA Gestão de Projetos (PECEGE-Esalq-USP). Entre os seus vários aspectos e em alinhamento com o evento do Museu Nacional, destaco a Gestão de Riscos.
Em 2018, tive o prazer de orientar um engenheiro civil, que aceitou o desafio de pesquisar o aspecto da Gestão de Riscos no Patrimônio Público com foco em Museus (que, aliás, tornou-se o título do seu Trabalho de Conclusão de Curso - TCC).
A sua defesa seria em dezembro daquele ano e, portanto, muito próxima do evento ocorrido no Museu Nacional, além do Seminário Internacional intitulado Patrimônio em chamas: quem é o próximo? Gestão de risco de incêndio para o patrimônio cultural, que se daria entre 26 e 28 de junho de 2019, no Rio de Janeiro. Não menos importantes, permaneciam vivos em nossa memória outros eventos de mesma natureza, ocorridos em várias cidades do país como, por exemplo, em São Paulo (SP):
Na cobertura desses eventos pela mídia observaram-se, em geral, contextos reativos e não preventivos e/ou preditivos. A Gestão de Riscos preventiva e/ou baseada em análises preditivas, se aplicada, teria proporcionado maior resiliência a esses locais, reduzindo ou eliminando o risco de acidentes ou, em caso de ocorrência, minimizando as suas consequências. Portanto, edificações, acervos, atividades culturais e de pesquisa, além de empregos, seriam protegidos, bem como o seu valor histórico, cultural, arquitetônico, acadêmico e social.
Não por acaso, o Programa de Gestão de Riscos ao Patrimônio Musealizado Brasileiro, elaborado pelo Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), passou por uma ampla avaliação e revisão, desde o período em que foi criado (2013) até 2020.
Veremos, a seguir, maiores detalhes sobre o Programa e sua relação com o item...
Ciência de Dados, uma Grande Aliada
A Análise Preditiva permite que se prevejam eventos indesejados, analisando-se a interrelação de fatos e/ou informações (dados), relativos ao contexto em questão. Ela deriva, portanto, da Análise de Dados (Data Analytics), que vem sendo amplamente utilizada em diversos setores (saúde, industrial, comércio, gestão de cidades, agronegócio, cultura, entre outros), para que se extraia valor (significado e percepção) dos dados provindos de diversas fontes (redes sociais, sensores, literatura, smartphones, entre outros).
De forma bem simplificada, este é um dos propósitos da Ciência de Dados (Data Science): dar subsídios aos gestores, com base no valor extraído dos dados, para que possam tomar decisões mais eficazes em diversos contextos. Para saber um pouco mais, acesse a aula Introdução à Ciência de Dados, elaborada pela Universidade Virtual do Estado de São Paulo.
Um dos propósitos da Ciência de Dados é dar subsídios aos gestores, com base no valor extraído dos dados, para que possam tomar decisões mais eficazes em diversos contextos.
Conforme citado, as bases de dados consistentes e representativas do objeto ou contexto em análise podem ser construídas, em muitos casos, pelo monitoramento contínuo de parâmetros relevantes àquele contexto. Ex.: sinais vitais de pacientes ou animais, temperatura de equipamentos em indústrias, teores de gases no ar, volume de tráfego de veículos em vias, concentrações de elementos químicos no solo, entre outros. No caso de museus, poderiam ser monitoradas grandezas físico-químicas, capazes de afetar as obras do acervo, como temperatura e umidade relativa do ar, intensidade luminosa, teores de material particulado e de gases.
Alinhado a isso, cabe aqui uma outra história pessoal interessante. De 2007 a 2014, estive envolvida com um projeto ambicioso em minha empresa (e do qual me orgulho muito), apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), na modalidade Pesquisa Inovativa na Pequena Empresa (PIPE) e com a consultoria de professores da Universidade de São Paulo (USP). A proposta, inovadora à época, consistia no desenvolvimento de um software baseado em web, capaz de coletar continuamente dados de redes diversas de sensores, enviando-os a um ambiente em nuvem, tratando-os e apresentando-os ao usuário por meio de dashboards, gráficos e planilhas que mostrassem a sua evolução no tempo e/ou sua interrelação, de forma amigável. Adicionalmente, o sistema podia disparar alarmes aos responsáveis, quando da ocorrência de valores críticos das variáveis monitoradas. Todas essas funcionalidades baseavam-se em dados e visavam ao suporte para a tomada de decisões assertivas e em caráter preditivo por parte dos gestores, evitando eventos indesejáveis como quebra de máquinas, parada de linhas de produção, interrupção de exames de imagem, qualidade do ar inadequada em shopping centers ou criatórios de animais, níveis críticos de líquidos ou gases em reservatórios, ou até mesmo a propagação de incêndios (em museus).
Recomendados pelo LinkedIn
Infelizmente, após o contato com um sem-número de empresas como hospitais privados, shopping centers, grandes criadores rurais, indústrias, escolas e bibliotecas, entre outras, constatamos que muitos consideravam o sistema um tiro no próprio pé ou, em outras palavras, um “dedo duro” de equipes e serviços de manutenção, por vezes negligentes, que só geraria desgastes e demandaria mais trabalho a elas. Essa mentalidade também alimentava o critério de compra de “soluções” por preço, e não por qualidade do serviço efetivamente entregue. Em muitos casos, essas “soluções” se resumiam ao levantamento de valores de variáveis por um funcionário, que deveria percorrer a planta do local uma ou duas vezes ao dia, anotando os valores de interesse em uma tabela feita em papel. Esta levava à geração de gráficos desenhados à mão e/ou à digitação dos valores em uma planilha Excel, para “posterior análise”. Pode-se imaginar a quantidade de erros possíveis nessas etapas, gerados por eventuais falhas humanas.
Essa história, baseada em 7 anos de experiência na carne, serve para ilustrar que não havia a compreensão de que, na realidade, uma solução baseada em dados coletados e tratados online (sem manipulação humana), proporcionaria maior confiabilidade a todo processo de análise de dados, além de:
A mentalidade reinante à época ainda persiste em muitas empresas, mesmo em casos extremos como os de diagnóstico precoce de doenças graves e preservação de vidas. Este fato é constatado por colegas que tentam, há anos, colocar produtos e soluções de ponta no mercado, que podem, por exemplo, indicar estados depressivos em operadores de maquinário pesado, índices inadequados de estresse em pilotos de avião e motoristas de ônibus, a iminência de estados infecciosos (inclusive pelo coronavírus e suas variantes) e sinais vitais que levam bebês à morte súbita, entre outros.
Instalações prediais e edificações até podem ser recuperadas, repostas ou reconstruídas, mas o maior valor reside naquilo que, em geral, é único, como acervos e vidas.
Voltando ao caso dos museus e ao Programa de Gestão de Riscos ao Patrimônio Musealizado Brasileiro, no tópico Etapas de Aplicação da Metodologia do Gerenciamento de Riscos, em duas delas há clara sinergia com o que aqui foi abordado. São elas Tratamento e Monitoramento de Riscos, ali descritas como segue:
Mas é na Estruturação do Programa por Eixos Temáticos que talvez resida a maior possibilidade de inclusão de sugestões claras de tecnologias e sua relevância no suporte às equipes encarregadas da Gestão de Riscos, especialmente no que concerne aos Eixos Temáticos II e III:
Expostos todos esses aspectos e reflexões sobre Cultura, Gestão de Riscos e Ciência de Dados, podemos concluir este encontro.
Fechamento deste Encontro
A visão, a iniciativa e o trabalho de Davi, embora maravilhosos, tiveram lugar a partir de um evento devastador - material, cultural, financeira, emocional e psicologicamente, para muitas pessoas.
Pensando na reinauguração do Museu do Ipiranga – USP, situado em São Paulo (SP), prometida para setembro deste ano, espero, do fundo do coração, que durante os quase 10 anos de obras no local, em que ocorreram tantos eventos trágicos conforme aqui citado, lições tenham sido aprendidas e medidas preventivas tenham sido tomadas, desde o projeto, para que não tenhamos que ser, novamente, meros espectadores de tragédias como a que originou o documentário Fenix: o vôo de Davi.
As causas da deterioração ou destruição de um patrimônio podem se manifestar pouco a pouco ou de forma súbita. Fato é que, o quanto antes forem detectadas, menores serão suas consequências.
Nesse sentido, para muito além da contratação de seguros, inúmeras tecnologias – de opções de hardware e software, até os recursos pertencentes ao ecossistema de Ciência de Dados – podem proporcionar um grande suporte preventivo e preditivo aos gestores.
Sim, queremos poesia, música, cinema e outras manifestações culturais, mas que elas sejam produzidas em continuação e complemento ao nosso patrimônio cultural, à nossa história, preservadas com naturalidade no dia a dia, e não com tanto esforço e dificuldade, como ainda ocorre em nosso país.
Ilustro essa fala, por meio de um outro evento extremamente simbólico, que também ocorrerá em setembro deste ano, justamente nos jardins do incendiado Museu Nacional.
Teremos acesso a outros fragmentos da nossa cultura e história, graças à abertura de uma cápsula do tempo, depositada nos jardins do Museu Nacional em 1972, com instruções explícitas de abertura em 2022, em evento público dedicado às comemorações dos 200 anos da nossa Independência. Na placa de bronze, que traz as instruções, pode-se ler:
O que diriam as gerações futuras, se abrissem uma cápsula enterrada em 2022, contendo fragmentos do nosso tempo (como, por exemplo, escombros do Museu Nacional)?
Por enquanto, seguimos com a forte esperança de que mais Davis estejam por aí, unindo-se nessa luta pela preservação da cultura, ou mesmo ressignificando resultados nefastos da imprevidência humana.
Melhor ainda, é que cada um de nós dê voz e força ao Davi que nos habita e que sente uma profunda tristeza, sempre que vê um pedestal de escultura vazio, pichações se alastrando como praga no patrimônio público e privado, ou um museu destruído pelo fogo.
Placa do Parque Buenos Aires (Bairro Higienópolis - São Paulo - SP) situada no passeio público (Foto: acervo pessoal da autora).
Supervisor Operacional | Pesquisa de Mercado
2 aNo texto há uma grande riqueza de insights! Fico contente com sua preocupação com a proteção do nosso patrimônio que, aliás, também é ilustrado nos ODS - Agenda 2030. Acredito que soluções em torno da Ciência de Dados devem ser cada vez mais consideradas no que tange ao monitoramento, controle e Gestão de Riscos, não somente para o setor cultural, mas também em toda área/local que possa causar grande prejuízo material e humano, conforme apontado.
Renata Marè Parabéns pelo artigo, uma reflexão para a importância dos dados x prevenção, não podemos perder a história. abraços
Industrial Equip. Sales & Service / IoT Consultant
2 aParabéns Renata por este artigo tão atual e relevante. Que ele circule por aí, despertando interesse e cativando seguidores. Que ele possa servir de inspiração e apoio àqueles interessados na divulgação e preservação dos espaços de educação e cultura deste país. Que ele possa unir mentes, agregando esforços e iniciativas compromissadas dos setores público e privado, criando assim, as bases para um legado responsável e duradouro para as novas gerações. Abraço.
Professor Inteli | CTO GItly | Educational Technology Advisor | Professor Convidado do Curso de MBA Data Science & Analytics para Operações POLI USP PRO
2 aParabéns pelo trabalho professora!
Renata Marè parabéns pelo excelente artigo e contribuição !