O “Caso Cristiane Brasil”: Direito em transformação


A suspensão da posse da Deputada Federal Cristiane Brasil como Ministra do Trabalho por uma liminar judicial é bastante ilustrativa da mudança pela qual passa o Direito Brasileiro. Diferentemente do que muitos possam pensar, não é somente com alterações na Constituição e nas leis vigentes que o Direito muda, evolui. A interpretação talvez seja o mais efetivo instrumento de mudança. De início, cabe notar que a Lei (dita Lei formal), aquela aprovada por deliberação dos parlamentos, já não detém o monopólio da função normativa do Estado. As transformações sociais e econômicas tornam-se cada vez mais velozes, impondo ao Estado editar normas também mais rapidamente – algo incompatível com o ritmo natural de elaboração de uma Lei –, atribuição melhor cumprida pelos Poderes Executivo e Judiciário. Aquele atua por intermédio de medidas provisórias e normas infralegais (decretos, portarias, resoluções etc.), incluindo as inúmeras editadas pelas agências reguladoras, mais aptas a responder a questões de alta especificidade técnica e econômica; o Judiciário, demandado a atuar em casos concretos, acaba por suprir omissões (quando não há Lei) e, principalmente, aperfeiçoa a interpretação da Constituição, com crescente aplicação direta de princípios. Esse o fenômeno mais interessante ora em curso, perceptível no caso da nomeação da Ministra do Trabalho. Por um lado, a disciplina normativa: enquanto o art. 84, I da Constituição Federal diz competir privativamente ao Presidente da República “nomear e exonerar os Ministros de Estado”, o caput do art. 87 estabelece que “os Ministros de Estado serão escolhidos dentre brasileiros maiores de vinte e um anos e no exercício dos direitos políticos”. Em uma interpretação literal, parece mesmo que o Presidente goza de ampla liberdade de escolha de seus ministros, como vem defendendo a AGU em suas tentativas de cassar a decisão. Como, então, pode o Juiz conceder uma liminar proibindo a nomeação com base na constatação de que a pessoa escolhida para o Ministério do Trabalho tinha duas condenações na Justiça do Trabalho (por desrespeito às leis trabalhistas) se não há, na Constituição, qualquer referência a tal impedimento? A explicação está na chamada “interpretação sistemática”, que impõe ao intérprete configurar a norma em sintonia com todo o sistema normativo, especialmente mediante aplicação de princípios e valores constitucionais.  Aliás, denomina-se “Neoconstitucionalismo” – em conceito muitíssimo simplificado, para os fins deste artigo – a teoria, ora em franca utilização em nosso Judiciário, que busca fundamento direto nos princípios constitucionais, nas garantias e direitos fundamentais, nos valores morais, por reconhecer sua superioridade sobre as regras. Perde prestígio a estrita legalidade. Assim se deu a decisão do caso da nomeação para Ministra do Trabalho: vislumbrou o Juiz afronta ao princípio da moralidade. É bem verdade que essa tendência de interpretações mais complexas traz  certo desconforto, na medida em que abre espaço para eventuais excessos dos juízes e torna mais difícil a consolidação de entendimentos, mesmo da jurisprudência. Exige que a Suprema Corte, já assoberbada, assuma papel ainda mais relevante. Mas, inquestionavelmente, permite que o Direito posto, aplicado, coadune-se mais com os valores morais e éticos da Sociedade. Será mesmo que o conceito de “livre nomeação”, aplicável aos cargos políticos e aos cargos em comissão deve ser tão alargado, a ponto de permitir, por exemplo, como é tão comum em todos os Poderes, que gestores nomeiem assessores sem qualquer qualificação, utilizando apenas o critério da confiança? Ou, em razão do inafastável princípio constitucional da eficiência, é possível exigir inclusive judicialmente, a demonstração de uma competência técnica mínima para acesso a cargos públicos? Parece que sim. Impõe-se observar a tese já prevalente no âmbito do Direito Administrativo, que considera até indevida a denominação “ato discricionário”, por aparentemente indicar liberdade extrema do administrador. Em verdade, quando a norma dá espaço de escolha ao administrador, está sempre a exigir dele a melhor escolha. É o que a sociedade exige. E o Direito garante.

 


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