O Celuloide e o Smartphone

O Celuloide e o Smartphone

Como mudou o nosso relacionamento com a fotografia em 50 anos

Foi relançado, em versão restaurada, comemorando seus 50 anos, um filme que virou um marco da história do cinema – Blow-Up de Michelangelo Antonioni.

O filme marcou o cinema pelos planos longos, (a falta de) relacionamento dos personagens, a capacidade do diretor de transmitir uma introspecção…

Mas não é sobre o filme em si que eu gostaria de falar, é sobre a trama. Nela, um fotógrafo de moda (David Hemmings, que está na imagem) tira, por curiosidade, uma série de fotos de um casal em um parque aparentemente vazio.

Quando vai para casa começa a revelar, obsessivamente, as diversas fotos que tirou do casal.

Explicação para a nova geração – os filmes eram de uma substância chamada celuloide que tinha uma película com substâncias sensíveis à luz; essa película era revelada (quando se via o negativo da foto) e depois a imagem era ampliada para o papel, dando origem à foto “final”.

Pois bem, esse fotógrafo, nas ampliações que faz, começa a ver em segundo plano nos arbustos do parque uma coisa que parecia ser um cadáver e acha que está diante de um assassinato. Assim ele vai ampliando cada vez mais as fotos para tentar ver do que se trata realmente. Só que estamos falando de película e de uma foto tirada com teleobjetiva. A definição do segundo plano era baixa e ampliações cada vez maiores fazem granular as fotos (se fosse hoje, o termo seria pixelar) passando do figurativo para o abstrato.

Daí a imaginação do fotógrafo começa a funcionar… Paro aqui a narrativa (e convido a todos que vejam o filme, para quem gosta de cinema é imperdível).

Essa cena, quando ele vai aumentando cada vez mais a foto, é emblemática em relação à diferença que temos hoje e o que tínhamos naquela época em relação à imagem.

Ele aumenta as fotos, em um processo no qual a imaginação começa a preencher os vazios da informação. Todas as ampliações estão diante dele, fisicamente. Sua relação com as fotos é uma relação ativa de construtor de uma realidade. As fotos prontas compõem um ambiente no qual ele interage para contar a história. Filmes, banhos de revelação, papéis para copiar, laboratórios, eram caros. Esses materiais não podiam ser desperdiçados. Portanto algum tipo de planejamento era essencial. Por outro lado, um negativo de 35mm (as máquinas de fotos outdoor) não era capaz de guardar tanta informação como uma foto de 12 megapixels. Justamente por ter poucas fotos e ser resultado de um trabalho antes (planejamento) durante (a fotografia) e depois (a câmara escura, a revelação e a cópia) essas fotos tinha uma “aura”, algo muito parecido com a discussão da obra de arte de Walter Benjamin.

Esse roteiro hoje seria impensável. O fotógrafo poderia tirar centenas de fotos com um smartphone, com uma resolução de milhares de pixels. Iria saber se existe algo no segundo plano simplesmente ampliando a imagem com um movimento do indicador e do polegar. Não existiria espaço para a imaginação e depois, se não despertassem mais interesse, essas fotos iriam simplesmente serem esquecidas em alguma nuvem.

Aliás guardar fotos em nuvens é exatamente a metáfora da nossa relação com as imagens nos dias de hoje. Elas lá e nós aqui…. Vamos ver, daqui a mais 50 anos qual será o nosso relacionamento com a fotografia. Existirá fotografia?


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