O demônio que te atormenta

O demônio que te atormenta

Se ao ler esse título você não se assustou, mas sentiu vontade de entender o que tem por trás dessa ideia, meus parabéns. Logo você saberá por quê. A palavra demônio, como se sabe, sempre teve uma conotação muito forte e negativa, principalmente por influência dos discursos religiosos. Entretanto, dois modelos de “demônio”, apontados por filósofos e historiadores da religião, chamara-me a atenção até hoje: o modelo maniqueísta e o modelo agostiniano.

O primeiro modelo de demônio, talvez um dos modelos mais simples e fortes que já houve, encontra-se originalmente numa teoria religiosa muito antiga, e que, de certa forma, encontrou força até os dias de hoje. Conta-se que há aproximadamente 1700 anos, vivia de forma muito simples pelos rios do Mediterrâneo, atualmente conhecido como Iraque, um profeta, cujo nome aproximado era Manes, e que dele teria surgido uma doutrina religiosa muito importante, o Maniqueísmo. Segundo Manes, a formação e o funcionamento de todas as coisas naturais, todo o universo, toda a natureza e todo indivíduo estariam divididos entre dois polos, ou duas forças eternas e em constante luta: as forças  positiva e negativa, a luz e a escuridão, ou se você achar melhor, o Bem e o Mal.

Tal doutrina, chamada de dualista exatamente por tal divisão, não colocava, na verdade, um “demônio” e um “deus” como personagens principais dessa luta cósmica, mas interpretavam de maneira mais simplista os acontecimentos que observavam como resultados dessa oposição. O bem e o mal teriam existências reais e influenciariam as criaturas, assim como suas ações, mais para um lado ou mais para outro. Essa teoria religiosa foi tão forte e de tão fácil aceitação que, durante os primeiros séculos do cristianismo, a própria Igreja, de certa forma, aceitou esse dualismo e se utilizava dele para propagar que a sua mensagem cristã seria a força positiva, do bem e de Deus, enquanto a luxúria, o egoísmo ou os falsos profetas fariam parte da propagação da mensagem do negativo, do mal ou de Satanás. Nesse sentido, a Igreja personificou aquilo que era considerado como força para garantir, psicológica e esteticamente, uma ampla fidelidade por parte das pessoas.

Por causa dessa teoria, ainda hoje, quando ouço alguém dizer que “tudo tem seu lado positivo e o seu lado negativo”, ou que “precisamos fazer o bem e combater o mal”, lembro quase que imediatamente do “demônio maniqueísta” criado pelo profeta iraquiano. Mas apesar de esse modelo ter sobrevivido até hoje, ele não é exatamente o meu “preferido”.

Num período muito próximo do profeta Manes, observando a força desse modelo de interpretação, mas percebendo que profundamente ela tinha problemas muito graves, estava um rapaz que mudaria essa história. Seu nome era Aurelius Augustinus, conhecido hoje apenas como Agostinho. Sob uma vida de questionamentos e debates, Agostinho questionou os próprios maniqueístas sobre sua interpretação de “mal’ e de “demônio”: como poderia o mal ter existência real? De onde ele teria surgido? Qual a sua força? Se bem e mal são eternos, isso não quer dizer que precisem um do outro para eles próprios existirem? Será que somos apenas um joguete de tais forças?

Se as perguntas de Agostinho foram importantes, mais ainda foi sua teoria. Depois de respostas vazias e incoerentes dos maniqueístas, Agostinho sabia que ações más, decisões más, comportamentos maus são, de fato, perceptíveis. Mas a sua teoria não requer a existência de uma força maligna exterior empurrando o indivíduo ou a natureza ao mal. O conceito de mal, segundo ele, é apenas de insuficiência: quer dizer, o mal, em si, não existe nem como força, nem como ser maligno, mas é uma questão de insuficiência de bem, ou de conhecimento do que é um bem. Em outras palavras, minha má decisão, ou minha má atitude são resultados de ter sido insuficiente o meu pensar antes de fazer e não de um demônio que me influenciou.

Mas não se engane sobre esse outro modelo de “mal” ou de “demônio”. Todos nós estamos sujeitos a ele também, pois em vez de ter uma existência exterior e nos influenciar ao mal, para Agostinho, ele é interno a cada um de nós e se trata de nossa ignorância do que é bom, de nossa cegueira ao que é verdadeiro, de nossa indiferença ao que é correto, tudo aquilo que nos faz cometer erros a qualquer momento. Assim, a melhor forma, segundo o autor, de se exorcizar o nosso “demônio” é o constante aperfeiçoamento intelectual, individual e social... É o que tento fazer todos os dias, assim como o leitor que chegou até aqui.

Felipe de Luca, Mestre em Filosofia pela USP, Pesquisador, na área de Filosofia da Ciência pela mesma Universidade e Professor titular, no Colégio de Aplicação Dr. Alfredo José Balbi, da Universidade de Taubaté e na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Contato: luckdelucca@usp.br

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