O desafio emocional das lideranças na retomada
Foto: Adobe Stock

O desafio emocional das lideranças na retomada

As águas no Rio Grande do Sul baixaram em junho. Aos poucos, a circulação de pessoas entre cidades e o trânsito retornou para as estradas e vias urbanas, sendo possível ver as marcas deixadas nos prédios, nas ruas e nas vidas humanas. Para se ter uma dimensão do tamanho da tragédia, de acordo com dados da Defesa Civil, cerca de 2,3 milhões de pessoas foram afetadas pelos efeitos das chuvas de maio, nas regiões Central, dos Vales, Serra e Metropolitana de Porto Alegre, sendo que mais de 442 mil moradores tiveram de deixar suas residências. No campo econômico, a Federação das Indústrias do Estado (FIERGS) declarou em meados de maio que as enchentes afetaram 91% das fábricas e teme uma “década perdida” para o Rio Grande do Sul, caso os recursos financeiros tardem a chegar ou não se tomem medidas de mitigação, contenção e prevenção dos danos. Sem dúvida, o longo processo de limpeza e reconstrução nos faz entrar numa fase de retomada que pode levar meses ou anos, a depender de diversos fatores sociais, políticos e humanos. É sobre os desafios emocionais de líderes organizacionais, nesse momento de crise para muitas empresas gaúchas, que trata esse artigo.

Há um ciclo de cura num período pós catástrofe. É preciso que tenhamos compreensão disso para seguir em frente. Em meu último artigo, no mês de maio, falava da imensa mobilização solidária que tomou conta do Estado e contagiou o país inteiro. Lembrava também dos efeitos colaterais para os cuidadores, educadores, voluntários e equipes de socorro de uma forma geral. No podcast Arena IE, falamos da Fadiga da Compaixão, que ainda acomete nesse momento muitos envolvidos. A condição, mais conhecida no meio da saúde, é uma espécie de esgotamento de recursos afetivos e atinge pessoas mais expostas ao sofrimento de famílias e comunidades. Dessa vez a fadiga atingiu, além das vítimas, profissionais de atendimento e lideranças, levando ao afastamento de pessoas impactadas, dificuldade de aproximação, escuta ou acolhimento e todos os outros sintomas físicos de exaustão (dificuldade de sono, cansaço, desorientação). Razão pela qual precisamos cuidar de nossas reservas empáticas, ou seja, precisamos balancear o cuidado com as pessoas de entorno e comunidade com o autocuidado.

A partir de agora, entra-se num período de reordenação e organização das rotinas de trabalho. Nas empresas, há um nível de cobrança e pressão sobre as lideranças muito maior do que se teve há algumas semanas. Isso porque o clima de ampla empatia e solidariedade passa a dar espaço para a inquietação, ansiedade e urgência. Seja com os recursos que não chegam, com as medidas de recuperação dos negócios e atividades que são adiadas, com as dívidas ou dificuldades financeiras, que começam a se acumular.

Em suas equipes, além da diminuição do contingente de pessoas, os líderes lidam com diferentes níveis de envolvimento dos que ainda estão empregados. Sim, porque já houve um movimento intenso de pedidos de desligamento, uma vez que cidades inteiras estão em migração. Quando alocadas próximas de comunidades diretamente atingidas, as lideranças, além de tentar retomar a rotina de produção, se encontram envolvidas em mapeamentos de impacto e medidas de auxílio aos funcionários. Algumas ainda se envolvem com fornecedores, clientes ou outras unidades de negócio atingidas, tendo que realocar recursos internos, recontratar prazos de produção, renegociar insumos ou entregas.

É como se os desvios de processo, que antes eram administrados como exceções, tivessem se tornado cotidianos, só que diante da variedade de dificuldades de entorno, muitas são as restrições e obstáculos do dia a dia. Todo esse caos gera um enorme nível de demanda de trabalho no campo emocional e relacional! Aqui trago alguns sintomas disso.

  • DESORIENTAÇÃO - Por onde a água passou, o rastro de destruição ficou visível nas paredes dos prédios, marcadas pelas manchas de lama, e especialmente no movimento lento e pesado das pessoas, que ainda retornam. Muitas delas ainda revivem, em suas mentes, as últimas horas e dias de um tempo que não existe mais. Um imenso contingente de pessoas impactadas permanece num estado de “ainda retornar”, vivendo em um estranho ir e vir, em que não habitam mais na vida que tiveram, nem habitam ainda no lugar em que devem ficar. É geral um estado de amortecimento, confusão, em que não se sabe direito o que fazer primeiro e quem envolver. Essa sensação volta à flor da pele a cada novo alerta da Defesa Civil do Estado, agora constantes, uma vez que segue chovendo fácil no decorrer dos dias.
  • DIFICULDADE DE ADAPTAÇÃO – Entre os milhares de desabrigados ou impactados, alguns retomam suas atividades profissionais, havendo modificado suas rotinas, mas estando em um processo contínuo de adaptação. Voltaram a cumprir seus turnos de trabalho, alocados temporariamente na casa de parentes, em abrigos ou, mais recentemente, em espaços alugados e compartilhados. Uma migração entre bairros permitiu que, por exemplo, na região metropolitana de Porto Alegre cidades mais atingidas, como Canoas, Eldorado do Sul, Esteio, São Leopoldo e Sapucaia do Sul cedessem moradores para Viamão, Alvorada e pequenos vilarejos dos arredores. Nesse momento, as pessoas se adaptam como podem, continuam suas vidas, lidando com as perdas e tocando adiante de alguma forma.
  • PREOCUPAÇÃO – uma vez que exista alguma espécie de rotina ou normalidade, algo tão simples como saber onde dormir, a que horas sair de casa ou onde deixar um filho pequeno (uma vez que as escolas começaram a recuperar as atividades), surgem pensamentos sobre o futuro mais próximo: o dinheiro que tenho vai dar por quantos dias? Será que algum dia vão arrumar minha rua? E meus parentes, será que vão conseguir se reerguer? E meu trabalho, meus colegas, meu setor? O círculo de potenciais riscos e a insegurança com o futuro vai ampliando o diálogo mental, o que produz ansiedade e, ampliando-se a análise, traz ainda mais quadros terríveis sobre o que pode dar errado logo a frente.
  • RAIVA, INDIGNAÇÃO, FRUSTRAÇÃO – Esse último aspecto é o mais explosivo desse momento que vivemos e infelizmente será o mais alimentado no decorrer dos dias. A sobrecarga na demanda cognitiva e emocional, assim como as incertezas no processo de adaptação, trazem um sentimento de desgaste e um déficit em torno de respostas mínimas de conformidade. Em paralelo, o contraste entre áreas e pessoas atingidas promove sensação de injustiça, desigualdade, desumanidade. Sim, muitas pessoas seguem vivendo como se nada houvesse acontecido. Nas empresas, as reuniões podem começar a parecer exatamente assim. Enquanto lideranças já começam a falar em “comprometimento” e “energia para seguir em frente” há pessoas que seguem lidando com o luto de suas perdas, de estruturas que levaram anos para conquistar, muitas vezes inclusive pessoas da própria família ou memórias de lugares em que cresceram. A tragédia não atinge a todos da mesma forma e, no caminho para recuperar alguma ideia de normalidade, a raiva em torno da demora nas respostas governamentais e o descaso aqui e ali nos espaços comuns pode gerar conflitos e respostas agressivas entre as pessoas.

Não vou me estender sobre toda a questão política sobre toda a ajuda prometida pelo poder público e até agora não recebida para reconstruir casas, negócios, infraestrutura e toda a economia do estado. Precisamos das pessoas, das empresas e dos recursos do poder público! É preciso isso tudo e muita vontade em cada um de nós, não dá para renunciar a nada. Porém, política foge de meu foco de análise, então me aprofundo no que está ao alcance: orientar as pessoas que lideram o processo de reconstrução nas empresas. Diante de todo esse quadro, é justo e até nosso dever aqui na Conexão IE dar algum direcionamento às lideranças.

E aqui resumo as quatro principais vias no trabalho de desenvolvimento a ser feito.

  1. Práticas de promoção de equilíbrio pessoal e autogestão - Se antes já era fundamental a busca de uma maior harmonia entre o tempo no trabalho e o tempo de qualidade para o autocuidado, agora o espaço pessoal precisa ganhar ainda mais prioridade. Períodos de descanso ou espaços para relaxamento ou meditação, boa alimentação, pequenos cuidados com a saúde física e atividades de curta duração para promoção do bem-estar (como oficinas de mindfulness, qi gong e semelhantes) precisam estar incorporadas às rotinas diárias das pessoas. E sim, mesmo no tempo “de trabalho” é preciso abrir espaço para esses momentos, inclusive diminuindo o estranho acúmulo e proliferação das reuniões, motivo de queixas bem antes de toda a crise chegar. Por vezes, simplesmente instalar um banco em "pulmões verdes" das empresas ou permitir um pequeno cochilo de 30 minutos em áreas agradáveis pós o almoço podem promover imensas mudanças no clima emocional das interações.
  2. Necessidade de capacitação em habilidades socioemocionais - As lideranças da organização, especialmente as mais envolvidas com as pessoas impactadas, mas também aquelas a que se reportam, precisam compreender a amplitude da crise gerada, que vai muito além da possível bagunça ocasional nos processos de trabalho, prazos, indicadores e metas. Há um enorme luto coletivo em torno dos planos futuros das pessoas, das expectativas de carreira, do entendimento do momento que vivemos como sociedade gaúcha e humanidade como um todo. É preciso falar sobre isso, com entendimento de objetivos a serem atingidos e ferramentas para se abordar as pessoas, de forma organizada e pertinente ao espaço de trabalho.
  3. Promoção de espaços coletivos para interação e troca - É prática de muitas empresas reuniões semanais ou até diárias de acompanhamento de rotinas de trabalho e orientações diversas, geralmente de forma coletiva e até mesmo em pé, no chão de fábrica. Esse tipo de prática pode não ser mais suficiente para se monitorar a gestão do desempenho – uma vez que muitos são os realinhamentos e diversos os entraves de execução – mas especialmente certamente não serão suficientes para manter a intenção das pessoas em continuarem suas atividades. Rodas de conversas, grupos de aprendizagem e outras possibilidades coletivas não ligadas ao desempenho, mas, sim, ligadas a uma melhor interatividade e troca são bem-vindas para suprir essa necessidade.
  4. Validação de valores compartilhados em comunidade - Por último, mais do que oferecer soluções e alinhar processos de trabalho, é preciso que os líderes possam promover nas pessoas um senso de comunidade e conexão em torno de valores compartilhados. Mais do que garantir os empregos e sustentos de todos, razão já muito boa, o fato é que o espaço de trabalho é também a oportunidade de recuperarmos, coletivamente, nossas rotinas, cidades e meios de vida. Recuperarmos, portanto, cada indivíduo e cada família. Nesse momento, todos somos impactados pelo momento pós enchentes. E o que quer que venha, enquanto reconstruímos nossas vidas.

De nossa parte, na Conexão IE IE continuamos realizando o trabalho em torno de percepção e regulação emocional. Especificamente, trabalhamos com nossos parceiros da Rede Conexão Empresarial e outras entidades ligadas à e educação emocional e desenvolvimento de lideranças, visando promover o Acolhimento Emocional necessário a todos nós durante a reconstrução.  

Luis Gustavo Patrucco

Consultoría de empresas na Moving Consultoria Ltda.

6 m

Prof. Alessandra, muito obrigado pela oportunidade de ter acesso a uma analise tão sintetice e oportuna. Também por propor caminhos para a solução desta situação tão difícil.

Marcelo do Carmo Rodrigues, MSc

Diretor executivo na Conexão IE com expertise em Inteligência Corporativa e Desenvolvimento Executivo

6 m

Definitivamente vamos ter que aprender a lidar com emoções assim como aprendemos as matérias básicas. Inteligência emocional voltará a fazer parte da base de formação de nossos líderes. Lidar com IA vai ter que esperar mais um pouco. As pessoas virão antes.

Entre para ver ou adicionar um comentário

Outros artigos de Alessandra Gonzaga, Ph.D.

  • Conexões que nutrem

    Conexões que nutrem

    Com Luiza Gonzaga do Carmo O fim de ano é um período de celebração, reflexão e encontros – seja ao redor da mesa ou no…

    5 comentários
  • Bruxas, mães e líderes

    Bruxas, mães e líderes

    Chegamos ao final de outubro com uma estranha ambiguidade nas decorações corporativas. Pelos corredores ainda é…

    23 comentários
  • O pequeno planeta das vontades que permanecem

    O pequeno planeta das vontades que permanecem

    Eu tenho pressa, tanta coisa me interessa. Mas nada tanto assim.

    17 comentários
  • Viciados em resposta

    Viciados em resposta

    É bastante recorrente em nossa newsletter falarmos sobre o efeito da tecnologia em nossa percepção e regulação…

    11 comentários
  • O trem, a pressa e a ansiedade

    O trem, a pressa e a ansiedade

    “Piano, piano si va lontano”. – ditado popular italiano Cresci em torno de uma comunidade italiana, especialmente…

    14 comentários
  • Qual é o teu barco?

    Qual é o teu barco?

    “Parece o fim do mundo”. O comentário veio de uma adolescente, dirigindo-se à amiga que estava a seu lado, na tarde de…

    24 comentários
  • Não é sobre o copo meio cheio: a escolha de ser otimista

    Não é sobre o copo meio cheio: a escolha de ser otimista

    “Eu só quero saber o que pode dar certo, não tenho tempo a perder”. – Torquato Neto/Titãs Por algum estranho motivo…

    6 comentários
  • Como búfalos, não hienas

    Como búfalos, não hienas

    “Estou tão cansado de atuar na ostentação da vaidade e me conformar com essa formalmente aceita insanidade digital…

    22 comentários
  • O bloco das tarefas intermináveis

    O bloco das tarefas intermináveis

    You can't always get what you want. But if you try sometime, you'll find.

    5 comentários
  • O peso do QE na construção de uma alma leve

    O peso do QE na construção de uma alma leve

    Não deixo de me surpreender com a importância da inteligência emocional nos dias de hoje. Lembro que há quinze anos…

    3 comentários

Outras pessoas também visualizaram

Conferir tópicos