O (des)encanto da tradução
Costumo referir-me à tradução (no meu caso, a literária) como a “medicina” das palavras. Não sei se será exagerado, ou não, mas, por algum motivo, parece-me bem. No fundo, pega-se em algo, neste caso um texto, e, de modo cirúrgico, tentamos transpô-lo para uma outra língua, respeitando sempre a condição original.
A tradução, para mim, que sou suspeito, é uma arte belíssima. Pegar num texto, pensado pela mente de outra pessoa, e tentar reproduzi-lo numa outra língua, mantendo o mesmo humor, o mesmo estilo, é um desafio tremendo e, a cada livro traduzido, a aprendizagem é imensa.
Devia, então, ser a profissão perfeita, certo? Claro… Desde logo começando pela falta de reconhecimento da mesma em Portugal enquanto profissão!
Há cerca de duas semanas, vi um anúncio para contratação de tradutor, em que uma das condições era ou ser licenciado em línguas, não se exigindo nesse caso qualquer experiência, ou 2 anos de experiência, se a licenciatura não fosse nessa área, ou então pelo menos 5 anos de experiência se não houvesse uma licenciatura de todo.
Recordo-me também de ter visto, há uns bons anos, um anúncio para tradutor a tempo inteiro, das 09h às 18h, de segunda a sexta-feira, no caso traduções técnicas, já não me recordo se dominando duas ou três línguas estrangeiras, com o salário a rondar os 600€.
São meramente dois exemplos, pois ao longo dos anos, creio ter visto anúncios e situações ainda mais tristes.
Um dia destes, estava a assistir a um episódio de uma série no Netflix e quase desisti. Desde nomes errados (a pessoa que traduziu aquilo não se deu sequer ao trabalho de pesquisar o correspondente em português, uma vez que estávamos a falar de personagens do universo DC Comics), passando por erros de concordância… Um desastre! E aparentemente o processo de seleção é muito exigente, segundo concluo pelas minhas pesquisas online.
O meu fascínio pela língua inglesa (as outras línguas foram surgindo depois) surgiu há mais de 30 anos, em plenas férias de família, ainda eu era um traquinas, quando ouvi uns turistas ingleses, questionei os meus pais sobre aquela língua e lhes disse: “Quando crescer, vou virar a língua ao contrário para também falar inglês!”. Aquelas fabulosas noções que temos das coisas, enquanto crianças…
Tive a sorte de, além de aprender inglês na escola, os meus pais me terem possibilitado, com muito sacrifício seu, a frequência de um curso num instituto de línguas, que me acompanhou até à adolescência e que, tenho a certeza, fez toda a diferença.
Tirei um curso superior nessa área, uma vez mais, seguindo o sonho.
Aos poucos, fui caindo na realidade… Tradução a tempo inteiro não era para todos! Ora exigiam experiência comprovada (mas se nunca se teve hipótese de começar??), ora exigiam combinações de línguas que nenhum curso oferecia… Ora havia alguém, que conhecia alguém, que conhecia outro alguém e acabava por ir trabalhar para determinado sítio…
E pronto, fui fazendo alguns “biscates”, ora traduzindo uns artigos para revistas, ora revendo alguns textos, ora fazendo traduções técnicas de empresas lá fora (incluindo um manual de um certo leitor mp3, novidade absoluta naquela altura, pelo qual essa empresa europeia nunca me chegou a pagar…), enquanto ia tentando criar carreira noutra área que, ainda que inicialmente fosse por necessidade, se viria a tornar uma segunda paixão (sei que há muita gente que acha que se deve apenas fazer uma coisa, mas eu sou apologista de que “quanto mais especializados, menos sabemos”).
E pelo meio lá foram surgindo umas parcerias interessantes, que viriam a ser retomadas ao longo do tempo, a hipótese de trabalhar com algumas editoras a sério.
Hoje em dia, pelos vistos, desde que alguém entenda um pouco de inglês, estará apto a avançar com uma tradução para português!
Se eu memorizar a informação de alguns livros de cirurgia, posso exercer a profissão num hospital? Se pegar no código do trabalho, e na legislação comercial, posso abrir um escritório de advocacia? Se pegar num livro de cálculos, posso ser responsável pela obra de construção de um prédio?
Porque deveria ser diferente com a tradução?