O mal sempre vence

O mal sempre vence

Então, como vai a vida?

Essa pergunta manifesta basicamente o sentido de “como vão as relações que temos com o mundo?”. Como Spinoza percebeu, a vida é um conjunto de relações do corpo vivente com outros corpos, ou seja, viver é estar em relação. Assim, a vida, no mundo, é na exata medida, intensidade e qualidade com a qual nos relacionamos.

Falar da vida e, ao mesmo tempo, impor uma condição de que ela obrigatoriamente será oscilação entre boa ou ruim, sem inércia, sem meio-termo, sem a tépida ideia de neutralidade, é algo que pode não ser, à primeira impressão, muito palatável, porém trata-se de constatação inequívoca de que nossas vidas são baseadas em uma senoide de afetos, altos e baixos. Não deveríamos ceder ao desejo de arriscar frear a fluidez da vida na tentativa de nos impor a ilusão de poder viver vagando no neutro, no limbo, já que o neutro só poderia existir em uma espécie de antivida – mas vamos deixar isso apenas nos quadrinhos –, pois nem na morte se admite a neutralidade, tendo em vista que transformamos ininterruptamente o mundo, da mesma forma que o mundo nos transforma a todo momento, de modo que não existe “pausa” para a condição de “estar neutro”. Não importa o que aconteça, sempre haverá um mundo diante de nós. O mundo sempre irá nos afetar de alguma forma. Se houver vida, haverá mundo. A vida é uma sequência ininterrupta de encontros com o mundo. Relacionar-se se traduz em afetos mútuos, recíprocos; mas o que é afeto, então? É o que sentimos a respeito da relação com o mundo. O sentimento é a interpretação que o corpo dá para o efeito que o mundo produz.

O que afetamos no mundo é fácil de responder – são as nossas próprias ações. Contudo, tudo o que sentimos nada mais é do que a tradução dos efeitos que o mundo produz sobre nós. Nesse sentido, permanece a outra pergunta: quando o mundo nos afeta, o que ele afeta?

Como já era de se esperar, interpretar os nossos afetos é uma busca antiga. Cada pensador nos traz um nome diferente para a energia que nos mantém vivos. Nietzsche a chamou de “vontade de potência”; Freud, de “libido”; Bergson, de “Elã Vital”; e Spinoza, de “Potência de agir”. Todas essas definições são o resultado de uma busca sobre o que na vida nos faz entristecer ou nos alegrar. Dessa forma, todos estabeleceram um interferômetro natural que mede a energia vital oscilante em nós, a qual se ascende quando estamos felizes e se declina quando estamos tristes. Logo, a nossa potência de vida é aquilo que o mundo afeta em nosso relacionamento com ele. Desse modo, o mundo nos afeta positivamente quando temos ganho de energia vital e negativamente quando perdemos energia vital. Nas palavras de Spinoza: “A alegria é a passagem para um estado mais potente e mais perfeito do próprio ser”, isto é, mais de nós em nós mesmos. Semelhantemente a tristeza é a passagem para um estado menos potente e menos perfeito do próprio ser, em outras palavras, menos de nós em nós mesmos.

A priori (em juízos sintéticos), somos o resultado dos nossos encontros com o mundo. Mesmo que tentemos nos dar conta de todas as transformações que vivenciamos, o mundo que nos transforma transcende a nossa condição de compreensão. Para percebemos a transformação causada pelo mundo, ela precisa ser exagerada na mudança, todavia, quase sempre, a transformação é sutil, logo a nossa percepção é irrisória. A maior parte das transformações passam à margem da consciência e ficam apenas a cargo do inconsciente. A incompreensão sobre como estamos sendo transformados é desmesurada e inexorável. Para entender alguém, seria necessário resgatar todos os eventos mutatórios que o mundo causou sobre esse alguém; é abstruso resgatar aquilo que passou despercebido, como os traumas, os complexos, as fobias, os cacoetes, as manias etc. Sem falar que grande parte daquilo que foi traumático e que acabou sendo reprimido no inconsciente continua latente e nos afetando durante a vida. Destarte, aquilo que vem à consciência é a parte mais superficial da psique. Isso significa que pensamos muito além do que vem à mente consciente, como Nietzsche dizia “Algo pensa em mim”, ou Freud “Não sou o senhor da minha própria casa”. O que se revela em nossa consciência é apenas um subproduto das nossas forças vitais. Então, não é possível entender o que se pensa sem entender o que se sente (princípio da psicanálise).

A psicanálise analisa os afetos para construir uma “gramática” da relação entre os afetos e os pensamentos. Segundo Nietzsche, “A consciência é uma garrafa vazia em meio a um oceano de afetos em maremoto”, em outros termos, o corpo é um turbilhão de afetos que levam a consciência para onde quiser. Não existe controle da consciência, não escolhemos o que pensar, apenas pensamos de acordo com os afetos. Portanto, nosso consciente conta com a razão para justificar todos esses afetos, ou seja, sempre encontraremos um discurso que justifique aquilo que o corpo mandar, e isso nos coloca em posição existencial obnubilada sobre a realidade, a qual se converge em nossa busca incessante por perfeição, que nada mais é do que uma tendência de resistência. A vida é uma constante resistência à morte, por outra, já que as alegrias e as tristezas acontecem ao sabor dos encontros com o mundo; estamos à mercê de um mundo que nos impõe consequências afetivas. Assim, a alegria é a maior resistência contra um mundo agressor, e, em contrapartida, a tristeza é a menor resistência contra esse mundo agressor.

Agora fica fácil enxergar o porquê de sermos constantemente influenciados a ter esperança, já que esta nos faz ignorar a nossa luta constante em resistir à morte. O problema é que isso também não passa de uma fuga, uma opção desesperada – quase siléptica – para não encarar o real, somente a ideia, isto é, aquilo que o mundo nos dá e nada além disso. Dessa forma, deixamos de ser afetados apenas pelo mundo e passamos a ser afetados também por nossa imaginação, uma vez que nem toda queda ou aumento de potência é causado pelo mundo que nos afeta; em algumas situações, há queda ou aumento de potência causados por um mundo imaginativo, uma ideia ou uma lembrança. Na teoria dos afetos, isso não se chama tristeza, mas temor, em que o temor é a queda de potência determinada por um mundo imaginado, uma paranoia. Do outro lado, quando algo imaginário alavanca a nossa potência, denomina-se esperança (filosofia) ou fantasia (psicanálise). Em outras palavras, é o ganho de potência determinado por um conteúdo de imaginação. Dessa maneira, Spinoza, Lucrécio, Nietzsche e os estoicos, em sua filosofia materialista, consideraram a esperança algo triste e ruim, já que ela advém da falta, da castidade, da impotência, da indigência e também da ignorância, pois não se pode ter certeza do que se espera. Além disso, a esperança sempre vem acompanhada do temor, uma vez que sempre existirá o medo de aquilo que se espera não acontecer.

Enquanto no mundo real podemos contar com a dicotomia alegria e tristeza, no mundo da imaginação, o temor vem acompanhado da esperança, os quais nos apequenam, então esperança e temor são, tal qual a alegria e tristeza, dois lados da mesma moeda. Consequentemente, altas doses de esperança acompanham altas doses de temor. Viver entre o temor e a esperança foi chamado por Spinoza de oscilação da alma. Dessa forma, o temor e a esperança só acontecem na ignorância do real, de modo que, quanto mais sabemos, menos tememos e menos temos esperança. Posto isso, o temor e a esperança estão intimamente relacionados à impossibilidade que temos em dominar todas as variáveis que agem sobre a nossa vida – quanto mais esperamos, mais o mundo fica diluído e esgarçados pelas coisas que passam na imaginação.

É comum encontrar a teoria dos afetos de Spinoza travestida de autoajuda, por exemplo, um certo livro intitulado “Quem mexeu no meu queijo?”, o qual tem um princípio inadequado sobre anotar tudo aquilo que nos alegra para repetirmos essas coisas nos outros dias, entretanto aquilo que nos alegra hoje pode não nos alegrar amanhã. Não é possível fazer da alegria uma fórmula de vida, um padrão existencial ou um instante de alegria uma resposta para a vida. Os encontros com o mundo são inéditos, qualquer instante de vida é inédito, bem como toda tentativa de encontrar protocolos esbarra no ineditismo, por isso os afetos debocham das instituições, porque as instituições enrijecem o corpo e blasfemam contra o mundo da vida e os fluxos existenciais. Portanto, tentar enxergar o real como previsível e óbvio é estar em contradição com a própria vida, é estar preso à estrutura religiosa do pensamento incondicionado a dar valor pela vida como ela se apresenta, é ser incapaz de reconhecer que o instante é a vida, a melhor por definição, a única vida.

Como devemos encarar isso então? Entregar-nos ao inevitável caso melancólico de esperança, temor e morte ou dar mais importância ao mundo tal como ele se apresenta diante de nós? Em alegrias ou tristezas, ao invés do mundo imaginário, de sorte que, quando se conquista a alegria no mundo real, ela é genuína e integral. A reconciliação com o real foi o que Spinoza chamou de beatitude. Esperar do mundo mais do que ele pode oferecer é fabricar em si uma usina de frustrações. O amor é afeto, é aumento de um estado mais potente e perfeito do próprio ser. Estamos no mundo, somos energia e lutamos muito para continuar existindo. O Amor é aquilo que sentimos pelo mundo quando ele nos alegra. Fazemos um esforço descomunal para nos proporcionar encontros alegres e evitar encontros tristes com o mundo, mas apenas deveríamos focar os momentos alegres e reais, bem como aceitar a tristeza como parte do nosso crescimento e reconhecimento de felicidade pelo contraste causado por ela. A quebra das muletas metafísicas que Nietzsche propõe converge para esse pensamento estoico, spinoziano, freudiano e foucaultiano, ao contrário de Platão, Aristóteles e Santo Agostinho, que depositavam suas alegrias em esperanças metafísicas. Amor fati, diz Nietzsche, amor pelo real, pela vida, em seu momento soberano, o qual se esgota em si mesmo; reconciliação com o real na alegria e na tristeza, e não no temor e na esperança.

“O mal sempre vence” é uma provocação, já que todos morreremos um dia, uma vez que o mundo agressor sempre ganhará. Por isso, disseram Spinoza, Nietzsche e Freud: “Só morremos de tristeza”. Todavia, o conceito de morte para o senso comum é contraditório, pois nunca encontramos essa morte – quando somos, ela não é, e quando ela é, não somos. Para Spinoza, a morte é a queda de potência, é a tristeza, é menos de mim em mim. O final da vida é a baixa total de potência de vida. Lutar pela vida é perceber que a morte está na vida, é perceber o quanto o mundo nos lesiona e resistir ao máximo possível. A morte é o triunfo estatístico do mal sobre o bem, é o fim de uma luta contra um mundo que muito mais lesionou do que alegrou, uma luta sobre a qual o fim é a morte, a perda necessária e inexorável de uma parte do mundo, nós, para a sobrevivência do todo. Diante disso, quando uma alegria chega, precisamos tratá-la com muito mais valor e humildade; precisamos agradecer quando o mundo proporciona alegria, pois ela é rara.

Agora, aquela velha frase “Nunca é tarde demais e nunca é cedo demais para deixar de ser idiota” faz sentido, ou seja, nunca é tarde demais ou cedo demais para perceber que a vida está bem diante dos nossos olhos. É muito fácil amar o que se deseja, e que não se tem, é fácil amar o calor quando se está no frio ou amar o frio quando se está no calor, mas que tal amar o real quando ele aparece?

Mayra Salsa

Jornalista | Social Media| Dados| Design Instrucional| Filosofia

2 a

Eu li com a calma e interpretação que esse texto merece. Provocativo. Bom demais!! 👏👏👏 Aguardo os próximo!!

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