O PoçoAnálise Jurídico Antropológica

Análise – O Poço


O Poço é um filme espanhol lançado em 2019 pela Netflix. O filma retrata a existência de uma instituição educativa/penal denominada o poço. É uma enorme estrutura dividida em andares, onde duas pessoas “moram” e são alimentadas por um elevador que desce, todos os dias, lotado de comida e que, a cada mês, são trocados aleatoriamente de andar, podendo subir ou descer mais ainda. Os níveis superiores comem bem, já os inferiores vão comendo cada vez menos, devido o andar de cima ir comendo sem se preocupar com o que restará para o debaixo. O filme começa com o personagem Goreng acordando no 48º andar junto com seu companheiro de cela, um senhor chamado Trigamasi que explica ao recém chegado como funciona o sistema. Nos primeiros dias, Goreng vê o elevador cheio de comida descendo e se recusa a participar disso, no primeiro ver, nojento comer algo que outros já comeram, entretanto, com o passar do tempo e com o chegar da fome, começa a participar do macabro banquete. Goreng conta à seu companheiro que se inscreveu no poço com o objetivo de receber um diploma/certificado ao passar 6 meses e levou consigo um livro “Don Quixote”. Seu companheiro estaria no poço como sentença após ter assassinado alguém e teria de aguentar o confinamento no Poço. Existem duas maneiras de se trocar de companheiro de cela: liberdade ou morte do companheiro. No terceiro, dos seis meses que passará no Poço, Goreng se encontra no nível 33 com uma nova companheira, a mulher que trabalhava na administração da instituição e que fez a inscrição de Goreng. Ela diz ter decidido participar do que a Administração prefere chamar de Centro Vertical de Autogestão, voluntariamente. Estou respondendo a questão “A” de maneira a contar a história, mas sem contar exatamente tudo o que se passa no filme, não vou tirar a graça da professora ver o filme contando spoiler. No mês subsequente, Goreng acorda no nível 202, contrariando a fala da própria mulher que diz ter trabalhado para a o Centro Vertical de Autogestão, que disse existir apenas 200 níveis. Goreng sobrevive por mais um mês de maneira inusitada e acorda no nível 6, com um novo colega, Baharat, que anda com uma corda e, desde que chegou à instituição, tenta ir subindo de níveis com o intuito de escapar. Nunca tendo acordado tão perto do nível mais alto do Poço, Baharat tenta desesperadamente subir, mas se esbarra com o egoísmo do andar de cima, que, a primeiro momento, aceita segurar a corda do homem, mas, enquanto o sobe, “cagam” (desculpa o uso da palavra, mas, o melhor jeito de transcrever o que foi visto, é a usando) nele, que acaba retornando ao nível 6, sem sua corda que teria caído poço abaixo. Goreng e seu colega bolam um plano: iriam descer de nível em nível separando a comida para que todos comessem apenas o necessário, preservando apenas a panna cotta, fazendo-a retornar até a cozinha com intuito de gerar espanto para todos. Óbvio que o tiro sai pela culatra e os planos precisam ser modificados um pouco. Ao chegarem no último andar, o mais inferior, se deparam com algo que, se usado como mensagem, traria real espanto a todos. O filme acaba com Goreng vagando pelo vazio, junto com seu “amigo” Trigamasi e sua mensagem subindo níveis a cima, em direção a grande cozinha.

Podemos entender a dinâmica desse filme de algumas maneiras, o primeiro e mais claro seria a divisão das classes, onde, as superiores possuem sempre mais e as inferiores sempre menos, nisso vemos onde o princípio constitucional da igualdade deve ser usado “Dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades” que se encontra exemplificado no rol do art. 4º, VIII, que dispõe sobre igualdade racial; no art. 5º, I, que trata de igualdade entre os sexos etc., é nos deparando com esse desigualdade que entendemos a importância desse princípio. Outra visão sobre esse filme, que tive graças a ajuda de minha companheira, seria a dificuldade de acesso à justiça. Quanto mais alto o nível da pessoa, mais farta e rápida será a mulher vendada com a balança e a espada na mão, assim como o elevador no filme, que sempre começava por cima, recheado de comida, enquanto os andares inferiores, que, na maioria das vezes, nunca se depararam com a luz da justiça em suas vidas, desrespeitando o que está prevista no art. 5, caput.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo- se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

Onde estão os direitos das camadas mais baixas da sociedade? Cadê o mínimo existencial garantido na constituição? Muitas pessoas, assim como no filme, precisam matar e comer se companheiro de cela para conseguir viver mais um mês. Outra pessoas preferem se jogar de seus respectivos níveis, preferindo o fundo do poço do que viver mais um dia onde se encontram. Existe um mundo de planejamento tecnocrático e muito elaborado. Na entrevista das pessoas no filme, perguntam sobre alergias e cuidados. Na cozinha luxuosa, a apresentação e a higiene são tudo para os chefes. Na prática, todo planejamento é inútil, assim como a preparação estatal, que prefere apagar a existência de pessoas de rua instalando a chamada “arquitetura anti mendigo” do que exercer políticas do bem estar social, trazendo esses cidadãos de volta para a sociedade. Isso se podemos os chamar de cidadãos.

Tomando o que foi mostrado no texto “Direito à identidade: etnografias na praça da Sé”, escrito pela professora Gisele Mascarelli Salgado, Cesar Martins e Cleidimar Isabel, podemos nos aprofundar mais nessa divisão de classes. Os arts. 11 e 12 do Código Civil Brasileiro, falam sobre o direito da personalidade, que são aqueles que tratam sobre o direito ao nome, corpo, aparência etc. “Visam proteger a dignidade, regulando as ações de reconhecimento entre sujeitos como condição essencial para o desenvolvimento das potencialidades físicas, psíquicas e morais.” (Direito à identidade: etnofotografias na Praça da Sé). Essa personalidade, para ser firmada, deve ser recheada de aspectos colhidos na convivência social, entretanto, como promover essa convivência social para uma classe que é marginalizada e expulsa para as ruas do país? O direito à identidade dessas pessoas é tirado pelas camadas mais acima da sociedade, assim como visto no filme. Os níveis mais altos cospem restos, urinam, defecam etc., no elevador, tudo com o intuito de menosprezar os que estão embaixo, e, ao serem questionados do motivo de fazerem isso, respondem como Trigamasi, colega de Goreng “É óbvio que fazemos isso porque estamos em cima e eles embaixo”, retratando o egoísmo da sociedade.

Outro texto tratado em aula é o texto “O acesso à justiça e o cotidiano dos balcões judiciais: uma relação possível?” (Janaina Dantas Germano Gomes) que retrata a realidade dos balcões judiciais e os pensamentos dos que lá trabalham. O trabalho é incessante e recheado de pressão por parte dos magistrados, e lhes falta reconhecimento, tanto por palavras quanto nas remunerações, gerando assim uma rotina de que cumprir metas e demandas sem se importar com o resultado, apenas organizar o e realizar o que lhe é proposto, como o visto na cozinha do filme. Lá existe um supervisor extremamente metódico é rígido que quer um banquete farto e sem defeitos, não se importante realmente se todos terão acesso à essa comida, o que ocorre com o acesso à justiça no país. Existem os mecanismos, mas nem todos tem acesso e nem todos se importam com isso.

Saindo um pouco da esfera social, podemos falar sobre estado de necessidade e a legítima neste filme. Estado de necessidade é excludente de antijuridicidade e está prevista nos arts. 23, I e 24 do Código Penal; nele, a pessoa é colocada numa situação contra sua vontade e, para sobreviver, precisa colocar bem jurídico próprio ou alheio igual ou inferior ao preservado. No filme, os indivíduos dos níveis inferiores são colocados em extremo estado de fome e acabam por matar seus colegas e os comer com a intenção de sobreviver por mais um mês. Muitos preferem não agir dessa maneira, morrendo, assim, de fome. A legítima defesa está prevista no art. 23 do Código Penal e é uma excludente de ilicitude, caracterizada pela existência de agressão ilícita, atual ou iminente, a direito próprio ou alheio, que pode ser repelida usando-se moderadamente dos meios necessários. Isso é mostrado no filme no momento em que Goreng se encontra amarrado e Trigamasi começa a cortar sua pele e a comer. Uma mulher, que tinha a mania de descer os níveis em busca de seu filho, se depara com a cena e, após ter sido ajudada por Goreng, retribui o favor e defende o mesmo, causando a morte de Trigamasi.

A sociedade se encontra organizada em níveis. A Administração é o nível mais alto de todos. Lá, tudo é planejado e arquitetado, o que resulta em uma visão extremamente reduzida do poço, observando apenas o procedimento adotado, mas jamais o que as pessoas dentro do posso passam. O segundo nível é a cozinha. Lá toda refeição é preparada, é lá que os dados coletados pela administração (comidas favoritas, alergias, higiene) são colocados em prática em um suntuoso banquete. Se o elevador se encontra vazio quando retornar para cozinha, o papel foi bem desempenhado, ou seja, não é sabido pela cozinha se todos tiveram acesso àquela refeição, apenas que ela foi inteiramente devorada e nesses dois níveis notamos a existência de uma síndrome do mal banal. Os outros níveis se encontram ao decorrer do poço. Quanto mais alto o nível, maior será o acesso à uma comida fresca e boa, intocada por outros e quanto menor o nível, menos comida fresca e boa, intocada por outros. A falta de comida ao decorrer do poço, tem diversos resultados. Uns preferem se atirar do poço para não passar mais um dia de fome, outros colocam valores e ideologias de lado e partem para a barbárie, matando, trucidando e praticando canibalismo, tudo para sobreviver. O objetivo do poço é trazer para seus apenados a chamada, pelo menos assim no filme, solidariedade espontânea, que seria a consciência geral de que por existirem pessoas em níveis inferiores, a comida deveria ser racionada, entretanto, o pensamento de Hobbes de que o homem é mau e egoísta de essência se comprova com o passar do tempo. Preferem passar um mês comendo bem e contar com a sorte nos subsequentes do que comer o necessário para sobreviver todos os meses. A única maneira de fazer o homem pensar no próximo é a base da ameaça, como demonstrado no Poço, onde Goreng ameaça defecar na comida caso não pensem no nível inferior, provando que o bom senso não atua de cima para baixo, mas a ameaça sim. Por fim o filme ainda tenta incitar esperança para os telespectadores ao mostrar Goreng e Baharat descendo os níveis, dividindo a comida, que, para ocorrer, é necessário ameaças e força bruta para conter parte dos esfomeados, enquanto outros se encontram definhando em seus cantos, e tentando resguardar um prato, panna cotta, com o objetivo de servir de mensagem para a cozinha. O que iria resultar na cozinha caso um prato voltasse intacto? Ao final de sua descida, encontram uma criança e acabam entregando a panna cotta, sua mensagem, para ela e decidem a mandar para cima como mensagem. Baharat morre e Goreng decide por vagar sozinho na escuridão, trazendo para os que assistem a e reflexão de que pensar no próximo, não apaga as barbáries cometidas por nós. Esse fim que eu descrevi é o mostrado no filme, entretanto não se sabe se foi realmente isso que aconteceu, Goreng pode ter morrido nos andares superiores e , por ter abraçado com tanta veemência o ideal da mensagem, ter sonhado tudo aquilo pelo o que passou até a conclusão do filme, que retrata uma sociedade narcisista, que para escapar da dor, cria metafísica. A sociedade é uma casca frágil que, após uma semana de necessidade, deixa de lado tudo que regula as relações inter-humanas, como o ordenamento jurídico, a religião, a filosofia, o amor e qualquer sentimento que seja barreira da sobrevivência.

Entre para ver ou adicionar um comentário

Outros artigos de Eduardo São Mateus Datovo

Outras pessoas também visualizaram

Conferir tópicos