O Princípio da Igualdade sob a ótica do conceito de gênero
O Princípio da Igualdade sob a ótica do conceito de gênero
O debate sobre a valorização do trabalho da mulher se baseia necessariamente sobre a observância do princípio da isonomia/igualdade. Trata-se de um aspecto central da discussão de qualquer tema que envolva o mercado de trabalho e a posição da mulher nele, visto que, ainda que se tenha avançado nas conquistas de espaços, permanecem estruturas que inviabilizam o tratamento igualitário.
A Constituição Federal proíbe diferenciações arbitrárias e discriminações sem sentido, pois ao agir de forma contrária, não se estaria alcançando a finalidade pretendida. Pode-se afirmar, portanto, que o Princípio da Igualdade caminha em duas direções.
A primeira se direciona ao próprio legislador ou ao executivo na hora de editar leis, medidas provisórias e decretos, impedindo que o façam de forma abusiva, agindo de forma discriminatória sem que o seu conteúdo vise uma igualdade de fato. Já a segunda via se direciona ao intérprete e à autoridade pública, que ao aplicar certo ato normativo não o faça apenas para um grupo em razão de sexo, religião ou classe social, por exemplo. Em suma, esse princípio visa “uma igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm direito de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico” (MORAES, 2009, p. 36).
Como já ponderado acima, as lutas de ampliação de direitos das mulheres nas relações laborais foram bastantes significativas e percebe-se uma mudança expressiva quando comparada com as condições dispostas há cinquenta anos. No entanto, essa identidade ainda está em transformação. No modelo de família tradicional patriarcal[4], ainda muito presente nos dias de hoje, a mulher permanece ligada a tarefas domésticas, ao cuidado do lar, ao passo em que o homem segue com o papel de provedor material. Cabia (ou ainda cabe) a ela prezar pela educação dos filhos e pela organização da casa.
Por essa posição imputada a mulher, a qual se deve privilegiar as demandas domésticas e familiares, que o Direito do Trabalho brasileiro, ao “proteger” as mulheres dispondo, inclusive, um capítulo próprio na CLT sobre isso (Capítulo III - “Da proteção do Trabalho da Mulher”, pode acabar, na verdade, assegurando a manutenção da ordem social vigente.
Dessa maneira, o princípio da isonomia torna-se um desafio para ser aplicado no contexto do gênero, pois ainda que se reconheça que ele suporta tratamentos diferenciados para consecução de uma igualdade de fato entre sujeitos distintos, o seu levante recorrente para justificar normas diferenciada às mulheres no âmbito trabalhista pode e, na verdade já ocorre, a banalização desse preceito nessa seara e o afastamento delas no mercado de trabalho.
Portanto, a observância desse princípio deve passar, necessariamente, pelo debate das justificativas que levaram à edição de normas diferenciadas ao labor da mulher. De acordo com a procuradora do trabalho Cristiane Maria Sbalqueiro Lopes (2006), os argumentos que sustentam essa distinção no tratamento possuem raízes na históricas (ou econômicas), morais, biológicas e utilitaristas, conforme se verá a seguir.
Desafios para proteção do trabalho da mulher
Até a Constituição de 1988, as normas protetivas dessa matéria, tal como em sua literalidade se propunha, em verdade, a discriminação e a sua “falsa benignidade” era evidente. Segundo Cristiane Lopes, do exame dos fatores que levaram ao estabelecimento de normas de proteção ao trabalho da mulher, "pode-se concluir que nenhum deles realmente se presta a proteger o trabalho feminino. O que efetivamente buscou-se proteger foi a estrutura da família patriarcal.” (LOPES,2006, p. 411)
As justificativas para tanto tiveram naturezas distintas. A primeira é histórica. Nesse caso, remonta-se à Revolução Industrial, que baseado no Liberalismo Econômico, empregava mulheres e crianças sob condições precárias, salários muito baixos e jornadas extenuantes.
Assim, sob a pretensão de proteger esses indivíduos, procuraram editar normas que limitassem a forma de exploração até então exercida. Contudo, Lopes indaga a ausência de amparo legal para limitar o poder desses industriais como um todo, posto que as condições acima indicadas atingiam mulheres, crianças, mas também homens, ainda que não fosse de mesma intensidade.
Mulheres tornavam-se uma escolha natural dos empregadores como forma de redução de custos, já que, por seu status social (desvalorizadas por sua condição), eram bem mais mal remuneradas.
Assim, uma possível razão para “proteção” seria salvaguardar os empregos dos homens, afinal proibições e/ou excesso de garantias acabam por encarecer o uso de determinada mão de obra.
Outra justificativa usual para adoção de tratamento desigual é decorrente de noções morais. Afinal, a inserção das mulheres no mercado de trabalho era importante, mas deveria ser feita de modo que não prejudicasse os bons costumes e a unidade familiar.
Examinando os dispositivos revogados da CLT que traziam um tratamento especial, muitos deles ilustravam muito bem esse raciocínio. Por exemplo, o art. 376, que vedava a realização de horas extras às mulheres. Ou ainda o art. 446 da CLT, que, entre os citados, era o mais evidente quanto ao resguardo da moralidade até então vigente.
Ademais, no parágrafo único, ao marido era garantida a faculdade de requerer a rescisão do contrato de trabalho de sua esposa se houvesse “ameaça aos vínculos da família, perigo manifesto às condições peculiares da mulher ou prejuízo de ordem física ou moral para o menor.”
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Uma terceira justificativa seria de ordem biológica. Trata-se de um aspecto delicado, pois, apesar de se reconhecer que há de fato uma diferença entre ambos os sexos, não pode ser utilizado sem critério, baseando-se apenas premissa da desproporção de forças.
Vejamos. Apesar de ter sido revogado pela Lei nº 13.467/2017 (Reforma Trabalhista), questionou-se a recepção ou não do art. 384 da CLT pela Constituição de 1988, uma vez que esse dispositivo atribuía apenas às empregadas o direito ao descanso de 15 minutos antes do período extraordinário.
Nessa oportunidade, o pleno do STF negou provimento ao RE 652312 e, dessa maneira, reconheceu que “o art. 384 da CLT, em relação ao período anterior à edição da Lei n. 13.467/2017, foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, aplicando-se a todas as mulheres trabalhadoras”.
É importante fugir dos argumentos rasos e generalistas, pois, ainda que determinadas normas, isoladamente, não sejam usadas para justificar uma não contratação, o fato de haver um rol delas pode desestimular a contratação.
Por fim, a última justificativa utilizada para haver um tratamento diferenciado é de razão utilitarista. Nesse, as proteções e as respectivas exceções a elas eram ditadas pela conveniência da época.
Um exemplo disso era o art. 379, que vedava o trabalho noturno às mulheres. Nele, havia uma lista de exceções a essa regra e, em geral, a ressalva dessa proibição se destinava aos serviços comumente feminizados, tal como doméstico e telefonia, e/ou de baixo prestígio social.
Diante do exposto, é necessário reconhecer que muitas dessas justificativas foram afastadas atualmente, muito em razão da promulgação da Constituição. No entanto, ainda há resquícios (mesmo que implícitos) dessas argumentações para sustentar algumas normas que preveem um olhar desigual para supostamente alcançar uma igualdade de fato.
Ressalta-se que o Princípio da Isonomia não significa extirpar de vez o tratamento diferenciado, já que de fato existem diferenças relevantes que devem ser objeto de proteção do legislador. A própria maternidade é um exemplo disso. Contudo, talvez a participação das mulheres no mercado de trabalho fique mais próxima do ideal se aquilo que a torna diferente também seja elevado aos homens.
Fonte: Curso de Direito do Trabalho - Pós Graduação - Descomplica