O propósito virou pomada Minâncora

Não sei se você conhece a pomada Minâncora. Pra desencargo de consciência deixe-me esclarecer: trata-se de uma pomada muito antiga que se propõe a ter mil e uma utilidades. Se você procurar por aí vai ver gente falando que ela remove a oleosidade da pele, seca cravos e espinhas, acaba com o chulé, frieiras e micoses, clareia a virilha e as axilas, elimina manchas de queimaduras, alivia a dor da picada de insetos e cicatriza cortes feitos ao barbear. E se procurar tem mais. Difícil de acreditar em todas essas promessas, né?

Você já deve ter percebido também que não gostar do trabalho é uma mania mundial. Apenas 15% dos trabalhadores no mundo todo sentem-se efetivamente engajados em seus respectivos trabalhos. Um número extremamente baixo, que preocupa muita gente, e que faz muitas pessoas procurarem soluções pra essa questão.

Uma das soluções mais citadas nos últimos tempos é o chamado propósito. Segundo os defensores desta corrente, pra gostar do seu trabalho você precisa ver um propósito, um motivo, uma justificativa naquilo. Enxergar porque você faz o que faz. Entender sua missão no mundo, qual é o seu grande porquê.

Eu inclusive concordo que qualquer um que encontre um propósito claro e significativo dentro do seu trabalho tende a encontrar sua realização profissional mais facilmente. E até mesmo continuo tentando clarear qual é o meu propósito continuamente e acredito ser um excelente exercício de auto-desenvolvimento.

Mas o que não dá é pra achar que encontrar o propósito é o o único remédio pra todos os males relativos ao trabalho. Uma pessoa pode não estar satisfeita com o seu trabalho por uma infinidade de razões: ela pode odiar suas atividades, não suportar o chefe, ter dificuldade pra realizar suas tarefas por não estarem alinhadas às suas habilidades, talentos e pontos fortes, pode estar se sentindo extremamente pressionada, estressada ou desvalorizada. Pode estar sendo obrigada a agir de forma conflitante com seus valores. Ou pode simplesmente achar que ganha mal.

E pra todas essas situações, sugerir que a pessoa encontre o seu propósito, me parece tão ingênuo quanto curar uma infecção com a pomada Minâncora.

Propósito é um conceito muito bacana. Muito importante. Pode realmente aumentar o engajamento e a satisfação no trabalho pra muita gente. Mas precisamos tomar cuidado pra não banalizá-lo.

Hoje mesmo estava assistindo a um debate sobre a Evolução do Trabalho promovido pela ADP e achei muito sensata a declaração de um executivo do Grupo Pão de Açúcar. Ele disse algo mais ou menos assim: “Precisamos colocar esta questão do propósito em perspectiva. Nem todo mundo tem ou vai encontrar um propósito sofisticado. Boa parte dos meus funcionários são das classes C e D. E pra muitos deles, o grande propósito é colocar comida na mesa”. 

E aí, quem vai questionar isso?

Quando algo começa a servir pra tudo, a ser repetido de forma automática, eu começo a desconfiar. Mas quero mais uma vez deixar claro: acho a ideia de encontrar um propósito muito útil e esse texto tem muito mais o objetivo de proteger esse ideia do que de detoná-la. 

E é por isso que sugiro parcimônia.

A propósito (com o perdão do trocadilho), se tiver uma infecção cutânea, vá ao dermatologista. Não use pomada Minâncora. 

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