O que o filme "O Poço" tem a nos ensinar sobre a sociedade em que vivemos.
"Quem inventou a fome são os que comem".(Carolina de Jesus)
Depois de assistir três vezes, com diferentes pessoas, ao filme O Poço, sinto que não há mais nada que possa fazer senão falar sobre ele (sem spoilers, prometo). E, claro, iniciar o texto com a frase acima.
Neste artigo, não trarei dicas técnicas sobre escrita e nem nada do gênero. Quero refletir, com você, um dos filmes que mais me tocou nos últimos tempos. E, para isso, todos os próximos subtítulos serão de frases retiradas do próprio filme, o que mostra, mais ainda, a força e os porquês de você assisti-lo hoje mesmo.
Existem três tipos de pessoas: as de cima, as de baixo e as que caem.
A frase acima dá início ao terror tão real que é esse filme. O Poço é uma prisão vertical em se encontram duas pessoas por andar.
Dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia, a obra conta com a brilhante atuação do protagonista Goreng (Ivan Massagué), que faz, por conta própria, a escolha de ir até o local para parar de fumar. Lá, conhece o velho Trimagasi (Zorion Eguileor), que se torna seu companheiro de cela.
Diariamente, desce uma plataforma com numa mesa repleta de comida pelos andares.
A grande questão, entretanto, a comida dessa plataforma é a mesma para todos os andares. O que os de cima NÃO comeram é o que sobra para os debaixo.
Num primeiro momento, como é comum a todos, logo associamos o filme de Galder Gaztelu-Urrutia a uma grande crítica ao sistema capitalista. Entretanto, o filme vai além disso, mostrando que não há uma única fórmula simples para solucionar todas as mazelas do mundo.
Num momento de isolamento social em que muitos tratam economia como algo separado da saúde, por exemplo – e vice-versa – a obra é um tapa de luva. Afinal, se fosse simples como muitos julgam resolver todos os problemas que por aí existem, talvez já estivessem resolvidos.
Temos um sistema repleto de falhas. E não é tão fácil assim para acharmos a solução. O Poço nos ensina isso.
A sociedade é moldada por aqueles que pensam só em si mesmo.
Uma vez por mês, quem está dentro do poço acorda em um novo andar. Você pode acordar tanto no quinto andar quanto no centésimo. Não se sabe aonde estará no próximo mês, e não há, explicitamente, um critério para isso.
O fato de não se saber aonde estará no mês seguinte faz com que a grande maioria, quando está em um andar "bom", coma sem pensar nos outros. E, quando está nos andares debaixo, onde a comida não chega, sinta raiva dos que estão acima.
E egoísmo é exposto ao extremo no filme. Mas, dentro da nossa sociedade também. Dependendo de onde estamos, ignoramos "quem está abaixo", assim como não nos sentimos no direito de nos portarmos diretamente a quem tem melhores condições.
Aqui, não estamos preso apenas à alimentação, mas às vestes e aos empregos.
Fernando Braga da Costa, psicólogo e autor de Homens Invisíveis: Relato de uma Humilhação Social descreve em sua obra o que considera invisibilidade simbólica, uma situação em que trabalhadores de classes menos favorecidas – a considerar, aqui, garis, faxineiros, garimpeiros e quaisquer outras que venham à sua cabeça que se enquadrem neste contexto – sentem-se totalmente à parte da sociedade pela função que exercem.
As pessoas que trabalham em empregos que não se faz necessária qualificação técnica ou acadêmica se sentem invisíveis, completamente substituíveis.
E não é de se cogitar que isso seja um delírio de Costa: a invisibilidade social se constitui, pouco a pouco, em ações dos que creem que gari e faxineiro tem que agradecer por terem um trabalho, que não se é necessária a educação com quem abre a porta do elevador, que essa gente nem é gente: é empregado.
As mudanças nunca acontecem de forma espontânea.
Solidariedade espontânea: essa expressão fica ecoando na cabeça depois que você assiste ao filme. A ideia de que se cooperássemos, pensássemos um pouco mais no próximo, cuidássemos da nossa atitude nos níveis superiores para pensarmos em quem está abaixo.
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Mas, apesar da teoria, o que vemos na prática da história é um egoísmo absurdo, total falta de empatia e selvageria levada ao extremo. A empatia, por vezes, é linda. Na teoria.
Na prática, quando a barriga ronca, é difícil ignorar a fome.
Cabe a nós julgar? Até onde entendo, não. Se a solidariedade e as mudanças da sociedade não são espontâneas, o nosso esforço é necessário.
Por mais que muitos se achem suficientemente instruídos e racionais, cabe lembrar que nossas atitudes também influenciam diretamente na resposta social de quem tem menos.
A fome liberta a loucura em nós
Você já sentiu fome? Digo, fome mesmo, passar fome mesmo. Eu mesma não tenho o direito de dizer isso, porque quando minha família passou por essa situação, eu era pequena demais para lembrar.
A maioria de nós, aqui, nunca passou fome. Dificuldades, talvez, mas atrasar um cartão de crédito não é fome.
E é justamente isso que o filme nos apresenta. Justamente por não saber aonde estarão no mês seguinte, em qual andar, a fome excede os limites da racionalidade e da sociabilidade e leva os personagens a cometerem atrocidades que, sãos, jamais fariam.
Por isso, antes ou depois de assistir ao filme, eu queria convidar você a ver também o curta-metragem "Ilha das Flores", do diretor Jorge Furtado, onde a fome de algumas pessoas, por conta da sua condição social, valem muito menos que a fome de porcos. É pesado, mas vale a reflexão:
Não sabemos onde estaremos amanhã
No filme, essa frase diz respeito ao fato dos personagens não terem consciência do nível em que estarão no próximo mês, o que leva a uma preocupação extrema consigo mesmo.
Mas, na vida, também. E não deveríamos nos conscientizar em relação aos problemas do mundo único e exclusivamente pelo medo de onde estaremos amanhã.
Se temos medo de como os outros nos tratarão caso estejamos em uma condição pior amanhã, isso talvez nos diga muito mais respeito às nossas atitudes dentro das condições que, hoje, vivemos.
Às vezes, é bem fácil. Às vezes, é bem difícil. Depende do seu nível.
Em que nível você está hoje?
Talvez, da onde você está, apenas olhe para os que estão lidando bem com a crise. Os que estão fazendo dinheiro e ensinando dicas infalíveis de sucesso em meio a uma pandemia. Mas, e quem está abaixo? Quem tem medo da fome mais do que qualquer coisa? Tem pensado neles?
Queremos, o tempo todo, ascender na vida. Crescer, social e financeiramente. Mas por que, exatamente?
Como diria Paulo Freire, "quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor".
O Poço é um filme que você deveria arrumar um tempo para assistir nessa quarentena. Há muito mais do que foi dito aqui, mas espero suas impressões.
Afinal, dependendo do nível em que você está, a sua interpretação será completamente diferente da minha. E tudo isso só torna essa obra mais incrível ainda.
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2 mCom certeza, o melhor artigo que ja li aqui na linkedin. Por acaso conheço o filme e ja assisti inumeras vezes, e morro de vontade de assistir mais vazes... e a interpretaçao que tive é quase identica a sua. Obrigado pela reflexao
60+ Referência no Brasil em Etarismo e Integração Geracional. Autora do livro: " Etarismo, um novo nome para um velho preconceito". Conselheira, Consultora, Palestrante e Professora de Programas de Formação Executiva.
3 mFiquei bem curiosa! Está na Netflix, vou assistir!
Analista de Indicadores Sênior | Gerência Industrial
3 m👏🏽👏🏽👏🏽
Gerente de Supply Chain
3 mExcelente artigo Mari Santa Ritta. Parabéns pela narrativa.
Enfermeira | Consultora em Projetos Públicos Sr. SP | Epimed
3 mQue artigo, meus amigos! 🔥🔥