O que podemos reflectir com "A fada Oriana"​

O que podemos reflectir com "A fada Oriana"

As obras de Sophia de Mello Breyner Andresen incorporam a magia das palavras, vão além em reflexões simbólicas do que é a vida, do que é e pode ser o ser humano na sua relação intimista consigo mesmo e com os seus pares.

O livro A fada Orianaé tradicionalmente conotado com a literatura infanto-juvenil, mas pode ser lido (e apropriado) em todas as idades, sendo que algumas reflexões poderão fazer até mais sentido quando se constitui uma maturidade mais densa adquirida pela vivência e/ou experiência.

É um livro mágico que nos apresenta uma fada, numa simbólica alusão ao seu percurso de vida, às mudanças e a um processo de transformação ancorado no exercício da autoconsciência. É impossível ficar indiferente à história desta personagem, que se pode transpor para a história de cada um de nós. É, assim, uma viagem, uma diáspora ao mundo interior numa história que aborda o propósito de vida, o questionamento, a influência e a acção dos outros, o encantamento das palavras que burilam nas intenções dos manipuladores, o impacto das decisões, o caminho do reencontro com as expectativas e o regresso da paz interior. Em suma, retrata a vida.

A protagonista é Oriana, uma fada “boa [...] livre, alegre, feliz” que é desafiada pela Rainha das Fadas a assumir a responsabilidade de tomar a seu cargo o cuidado e a guarda de “todos os homens, animais e plantas” de uma Floresta. Uma vez a responsabilidade aceite, o seu quotidiano passa a ser preenchido com o zelo pelo contexto e pelos seus habitantes. Uma velha, um lenhador e um moleiro estão, a título de exemplo, entre os bem-aventurados. Nem tudo será, em toda a história, linear. O enredo introduz um peixe encantador que inebria Oriana com palavras. E Oriana ilude-se, negligencia os seus compromissos, perde as asas, descobre que as palavras eram encantamentos e vivencia, por experiência própria, “que difícil que é a vida dos homens, não têm asas para voar por cima das coisas más”.

O que podemos reflectir:

  • A facilidade com que se julga os outros conduz, por vezes, à verbalização de comentários sem que se conheça ou respeite as vivências de cada um. As andorinhas desafiaram Oriana a partir com elas para conhecer o mundo, até porque tinha duas asas e, como tal, condições para essa aventura. Porém, Oriana mantinha-se leal ao compromisso de cuidar da floresta, declinando o convite: “– Oriana, não mereces ter asas. Tu não amas o espaço e desprezas a liberdade”. Após esse comentário, “viraram-lhe as costas e não fizeram mais caso dela.”
  • A acção pedagógica e altruísta de apoiar é muito diferente de substituir, sendo que, na primeira, se promove a autonomia e, na segunda, se alimenta a dependência. A fada Oriana diariamente limpa e organiza a casa do moleiro, uma família com onze filhos e escassa organização. Todos os dias, o mesmo cenário, repetidamente: “Mas a moleira nunca percebia que tinha ali estado uma fada, porque saía sempre de casa atrasada e a correr, e como era muito distraída não reparava que deixava tudo desarrumado e de pernas para o ar. E quando chegava a casa não se espantava nada de encontrar tudo em ordem, porque não se lembrava de que tinha deixado tudo fora de ordem.”
  • A abundância de bens nem sempre é directamente proporcional à qualidade e agradabilidade do ambiente vivenciado: “Em casa do Homem Muito Rico as fechaduras eram tão caras que nem uma varinha de condão as podia abrir [...] mas reinava uma atmosfera de grande má disposição.”
  • A identidade dos locais e das pessoas que o constituem é, muitas vezes, colocada à prova em tempos de mudanças e, não raras vezes, pode manifestar-se a resistência à transformação: “– Oriana, não podemos estar aqui. Não cabemos nesta sala [...] E somos coisas com feitios diferentes e não nos entendemos bem. Eu sou uma mesa antiquíssima; estava na sala de jantar dum convento [...] há uma grande embirração entre mim e o sofá doirado. Eu sou toda lisa, ele é todo feito de torcidos. Não nos podemos entender. Eu sou uma mesa de convento, fiz voto de pobreza, não posso viver nesta sala. Oriana, toca-me com a tua varinha de condão e faz-me ir pelos ares para o meu convento.”
  • A necessidade de encontrar culpados habita a vida das comunidades, com uma marca de temor, como se isso, de forma mágica, resolvesse as situações e desonerasse a responsabilidade colaborativa: “– Passaram-se nesta casa duas coisas escandalosas. Ai de quem as fez! Quero que o culpado se acuse [...] Foi com certeza a criada da sala. A estas horas estão todos na cozinha a rir-se de mim. Tenho que despedir a criada da sala.”
  • A consciência de si, a forma como nos conhecemos apoiada em elementos que reenviem informação parece consolidar o que é aparentemente óbvio: “E quando assim estava a olhar para o peixe viu a sua cara reflectida na água. O reflexo subiu do fundo do regato e veio ao seu encontro com um sorriso na boca encarnada. [...] – Mas que bonita que eu sou – disse ela. – Sou linda. Nunca tinha pensado nisto. Nunca me tinha lembrado de me ver!”
  • Embora esta última reflexão possa ser óbvia, a dúvida é uma circunstância inerente à natureza humana, levando ao questionamento silencioso com os pensamentos: “– Se calhar – pensou ela – o meu reflexo é mais bonito do que eu! Como é que eu hei-de saber a verdade?”
  • A expressão do feedback dos que nos rodeiam nem sempre é suficiente para esclarecer os questionamentos, levando a uma busca incessante de respostas: “– Nada no mundo é tão bonito como tu – disse o peixe [...] – Achas que sim? – perguntou Oriana. E ficou a cismar. De repente teve uma ideia: lembrou-se do espelho. Pensou: – Vou ver o que diz o espelho.”
  • A possibilidade de, em alguns locais, todas as soluções poderem ser sentidas e vividas como problemas ou obstáculos é uma realidade com a qual teremos de viver: “–  Nesta casa – disse Oriana – tudo dá mau resultado. [...] Aqui nada há que falte e tudo é irremediável.”
  • A possibilidade de, com algumas pessoas, estar sempre tudo aquém do expectável e de se mudarem repetidamente as coisas sem que haja satisfação é algo com que teremos de conviver: – “Oriana fez tudo quanto o peixe disse, mas ele ainda não ficou contente. Mandou-a desmanchar o que tinha feito e recomeçar tudo outra vez. – Agora está melhor – disse o peixe. – Mas amanhã vamos experimentar outro.”
  • A possibilidade do encantamento de reter a parte e esquecer o todo, seja de contextos e/ou de pessoas, pode levar a um alheamento das responsabilidades. Se é certo ou errado, caberá a cada um reflectir: “Oriana passou a manhã e a tarde a colher flores, a ver-se no rio e a ouvir os elogios do peixe. Esqueceu-se de ir a casa do moleiro e a casa do lenhador. Esqueceu-se de tomar conta dos animais. Esqueceu-se de regar as flores. E, daí em diante, Oriana foi abandonando um por um todos os homens, animais e plantas que viviam na floresta.”
  • As acções têm impacto, ainda que nem sempre se tenha essa consciência imediata tal é o deslumbramento por algo que pode ser acessório em detrimento do essencial: “– Durante uma Primavera, um Verão e um Outono passaste os dias e as noites debruçada sobre um rio, a ouvir os elogios de um peixe, apaixonada por ti. Por isso, Oriana, deixarás de ter asas e perderás a tua varinha de condão.”
  • O pendor para responsabilizar terceiros por acções individuais é uma forma subtil de transferir o ónus da responsabilidade: “– Vou pedir ao peixe que me ajude. Ele é que teve a culpa disto tudo.”
  • O contexto de dificuldade ou vulnerabilidade faz, por vezes, esclarecer de forma cabal a diferença entre amizades e conveniências: “E esperou, esperou, sentada à beira do rio. Mas passaram muitas horas e o peixe não apareceu. – Que mau amigo – pensou Oriana –, estou triste e ele não me vem consolar.”
  • O encantamento de manipuladores enreda as pessoas mais distraídas, e quando se descobre o sentido, já pode ser tarde: “– Ai, como o peixe me iludiu e me enganou com os seus elogios!”
  • A ardilosa forma de contornar as questões – tão singular dos manipuladores – encontra formas inauditas de encontrar argumentos de forma a que o ónus da responsabilidade tenda a transferir-se para os outros: “– Sabes – disse o peixe –, quando uma pessoa nos atira à cara o favor que nos fez perde o direito à nossa gratidão.”
  • A história nem sempre é contada de acordo com a realidade, e a fronteira entre verdade, mentira e boato é definida, muitas vezes, em função dos interesses e da disseminação da mensagem: “– Talvez seja como dizes. Mas o peixe contou aos outros peixes, que contaram aos pássaros, que contaram aos coelhos, que contaram às víboras, que tu estavas louca de amor por ele e que só pensavas em te enfeitares para que ele te achasse bonita.”

A história alude, de forma metafórica, ao bem e ao mal, à verdade e à mentira, à assertividade e à manipulação. E acautela que, quando o interior é honesto e fidedigno, a essência revela-se e ancora o processo do reencontro individual. 

E, incrivelmente, o caminho é individual, as opções e as decisões são de quem as toma. Mesmo que face às ilusões do contexto se possa crer que a responsabilidade das acções é externa. 

Termino citando Albert Camus: “Somos responsáveis por aquilo que fazemos, o que não fazemos e o que impedimos de fazer”.

📝 Artigo escrito ao abrigo do antigo AO ✅ Revisão de texto realizada por José Ribeiro

📌 Mais artigos no Blog In-Totum. 📤Visite, comente, partilhe.

Paula Elsa Moniz

Member of the Board and Shareholder at TMGs Maritime Transport Cargo

5 a

Estou na poesia da poetisa do mar.

Cristina Dionisio Paulino

Desenvolvimento Pessoal e Organizacional / Consultora&Formadora

5 a

Obrigada Sandra por esta reflexão. Já conhecia a obra mas nunca a tinha visto assim. Muito bem.

Inês Lopes

Finance Professional | Driving Financial Success through Strategic Insight and Continuous Learning.

5 a

A fada Oriana, já uma obra lindíssima, agora vista com mais encanto. Colocado agora na lista de obra a reler, mas com outra visão.

Entre para ver ou adicionar um comentário

Outros artigos de Sandra Dias

  • Haverá assim tantos chapéus ou temos de ser palermas?

    Haverá assim tantos chapéus ou temos de ser palermas?

    As vivências também se fazem de cultura e, por vezes, essa cultura perpassa, por exemplo, a tela de um filme. Muitos de…

  • O valor do rigor – quem escolheríamos para preparar o nosso pára-quedas?

    O valor do rigor – quem escolheríamos para preparar o nosso pára-quedas?

    Há algum tempo, participei de uma conversa fascinante que me fez reflectir sobre o valor do rigor e do brio nas nossas…

  • Uma Carta para Garcia – Reflexão sobre responsabilidade e missão

    Uma Carta para Garcia – Reflexão sobre responsabilidade e missão

    O clássico ensaio de Elbert Hubbard Uma Carta para Garcia continua a ressoar como uma reflexão atemporal sobre…

    2 comentários
  • O controverso mito da sorte

    O controverso mito da sorte

    Na jornada do desenvolvimento pessoal, muitas vezes deparamo-nos com provérbios e ditos populares que se cruzam com a…

    2 comentários
  • Reflexão humanamente inteligente

    Reflexão humanamente inteligente

    Os nossos dias correm velozes e surpreendentemente matizados por novidades inteligentemente artificiais. Talvez o…

  • "Verdade"

    "Verdade"

    “VERDADE A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível…

  • “Igual-Desigual”

    “Igual-Desigual”

    “Eu desconfiava: todas as histórias em quadrinho são iguais. Todos os filmes norte-americanos são iguais.

  • “Recomeça... Se puderes”

    “Recomeça... Se puderes”

    “ Recomeça..

    2 comentários
  • Nada como um dia depois do outro

    Nada como um dia depois do outro

    Os provérbios, na sua excelsa missão de trazer à luz da consciência o que de tão simples habita a existência. A…

    2 comentários
  • Fez do lobo o guardião das ovelhas.

    Fez do lobo o guardião das ovelhas.

    Os provérbios e as suas mensagens, tantas vezes em modo de reflexão sobre o mundo e as acções ou opções dos que o…

Outras pessoas também visualizaram

Conferir tópicos