O regresso do Estado Democrático de Direito, escrito por Saulo Taliatte
No processo de redemocratização que foi vivido no Brasil no final da década de 80, a Carta Magna buscou enfatizar as garantias individuais e priorizar a liberdade, tão cerceada em tempos ditatoriais. Contudo, a teórica normativa garantidora de direitos se contrapôs com a prática executória das mesmas, pois, não obstante da realidade o modelo de segurança pública e defesa nacional exposto como fundamento do Estado Policial vivido no período retrocedente ao novo texto constitucional e que, em tese, não recepcionado por ela, se fixava ainda presente nos hábitos do Estado e gradativamente tomando nova forma até sua perpetuação em nossa atualidade.
O sentido da reinstauração do Estado de Policia é meramente político e arbitrário na qual se beneficia uma parcela de indivíduos que possuem interesse no autoritarismo sub-rogando o devido processo legal em mero espetáculo a luz da ilegalidade, vendendo o punitivismo como doença social e o Estado Totalitário como a cura: “A manipulação da lei revela um instituto prejudicial ao Estado de Democrático de Direito”.
Lecionando um entendimento ao parágrafo anterior, o instituto da Lawfare, introduzido no sistema anglo-saxão na década de 70, referencia a lei como arma de guerra ao indivíduos que o Estado julga inimigo, relacionando assimetricamente da aplicabilidade da norma de acordo com o agente constituído ao jus puniendi. Esta forma de agir do Estado cria uma insegurança jurídica em torno do conceito de legalidade explorando da sociedade o medo e a falsa percepção da realidade sobre a sustentação do Estado Democrático de Direito que na inconstância deste aceita a contaminação dos atos jurídicos, criando assim um modelo punitivo do inimigo.
As lições do direito punitivo advêm das leis do nosso Código de Processo Penal formulado no ápice do modelo fascista, garantidor do axiológico indúbio pro societate e arma da atual contenção de parcelas da sociedade menos favorecidas pelas ações do Estado, que ao passo de não prover condições de moradia, emprego, educação e outras garantias induz a indigência e a marginalidade ao olhos das classes mais abastadas. Portanto, todo este ciclo de incompletas ações estatais provoca um distúrbio no plano efetivo da democracia, ou seja, abre-se a corrente autoritária para sanar “problemas” sociais inaugurando o Estado securitário utópico.
Quando a política e os representantes dos demais poderes públicos partem do pressuposto que o Estado Policial ou Estado Penal é a melhor forma de se projetar a segurança nacional e os interesses de uma sociedade justa ao plano das garantias individuais de nossa Constituição Federal, cria-se por ele a figura do combate ao agente que, por inércia do Estado, recebe das organizações criminosas o acolhimento e as condições de subsistências necessárias e se volta mediante ações criminosas repelindo o mesmo Estado que o desprezou causando assim a figura do indivíduo inimigo do estado, nas quais teorias são fundamentadas no aspecto inquisitivo do processo e no tratamento diferenciado, podendo até, cometer atos de ilegalidade, visto que o inimigo não é considerado com uma figura humana provida de racionalidade.
Nas lições do Jurista Alemão Guinter Jakobs no qual idealizou em teoria explicativa o Direito Penal do Inimigo lecionado um contexto de aplicação de garantias fundamentais que não se aplica aos moldes do indivíduo rotulado como inimigo e que portanto sugere que,
“... quem não presta uma segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal não só não pode esperar ser tratado ainda como pessoa, mas o Estado não deve tratá-lo como pessoa, já que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoais (Jackobs, 2012, p. 40) .”
Na constância desta tratativa com o inimigo é idealizado que a pena seguindo as formas legais e respeitando o Estado Democrático de Direito seria aplicada apenas aos cidadãos de bem, uma vez que os mesmos cometem crimes eventualmente ou por descuido, e a pena lhe servirá os ressocializarem, enquanto o inimigo, que é um criminoso por tendência, não tem a chance de ressocialização e a ele deve ser aplicada institutos penais como a medida de segurança ou como vem sendo utilizado atualmente a prisão preventiva de caráter meramente discriminatório e seletivo, pois justificando o cerceamento da liberdade o caráter do inimigo é imodificável.
Ademais, diante destas concepções que transformam o Estado de Direito Democrático em um Estado Policial devido a negligenciação do poder público e as falhas nas políticas de segurança pública e inclusão social que constroem o inimigo ao olhos da sociedade é notório perceber que o resultado deste entrave é o julgamento antecipado e as práticas que corroboram para a manutenção da ilicitude dos atos policiais em face das classes sociais que vivem nas periferias dominadas por praticantes de atividades ilícitas.
Neste sentido, o Estado busca em ações ilegítimas a resposta para o reparo do fracasso de suas políticas e de suas polícias e a manutenção da corrupção instaurada a fim de se obter vantagem sobre a situação exposta. Enfatiza-se que neste Estado Policial emergente da vontade seletiva do Estado em punir e controlar uma parcela da sociedade há uma atribuição de atividades criminosas aos indivíduos que residem nas periferias a fim de justificar os atos truculentos e garantir a sensação de efetividade positiva da política de segurança pública.
Em um ambiente democrático e garantidor de direitos o processo jurídico na esfera penal não pode ser desprovido de segurança no que o confere a tutela de direitos para estes indivíduos dentro das comunidades periféricas, pois, no Estado garantidor entende-se que o poder exercido pelos agentes públicos de segurança é de preservação a violação dos direitos e das garantias individuais, fato este que não ocorre com precisão e só pode ser tolerado em um ambiente com um formato de governo hostil e limitador de direitos.
Deste modo, se de fato a construção do inimigo for praticada constantemente pela mídia e pelas nossas crenças em acreditar que todo indivíduo periférico e marginalizado pelo Estado é um agente que impõem risco a manutenção do Estado de Direito estaremos distantes da realidade proposta pelo texto constitucional em acreditar que todos possuem direitos e garantias indisponíveis, pois, conforme dito por Zaffaroni em uma de suas dialéticas, “...o grande escândalo não está na proposta de Jakobs, o grande escândalo está que a proposta de Jakobs tira o cobertor no qual ficamos agasalhados fazendo direito penal do inimigo dia a dia, o grande escândalo não e a proposta do direito penal do inimigo, o grande escando é que nos temos que lutar contra o direito penal do inimigo praticado e idealizado por nós e por nossos colegas...”
No entanto, quando de fato se observar que o inimigo social causador da turbulência democrática é o próprio poder público, a priori, podemos entender que as ações contrárias as normas constitucionais são definitivamente a essência deste ciclo retardatário do Estado Democrático de Direito.