O Rei e a castração química do amor
Esta noite sonhei que dançava com Roberto Carlos - sim, o Rei Roberto! Já explico, porque hoje em dia não se pode sonhar com Roberto Carlos assim do nada, sem um motivo relevante que neutralize a gravidade desta irrelevância. Vou tergiversar, como de hábito, mas logo recupero os detalhes do sonho na narrativa - detalhes tão pequenos…rs.
Pois bem, tenho que me confessar: sou cientista (sério!) do campo das Ciências Humanas e Sociais e estou trabalhando em uma pesquisa independente sobre violência afetivo-conjugal contra mulheres. Calma, não vá embora! Ainda vai ter Roberto Carlos…
Se você continuou a leitura apesar do desafiador parágrafo anterior, merece saber um pouco sobre o esforço da pesquisa que tenta descobrir o motivo de os índices de violência contra mulheres continuarem altíssimos, apesar de tantas informações, endurecimento das leis, ativismos de organizações da sociedade civil, sendo a maior incidência de ocorrências entre parceiros afetivos. Todo mundo sabe disso, porque sempre aparece nos jornais, nas reportagens, programas de TV e rádio quando (e tão-somente) são divulgados anualmente os números terríveis do Atlas da Violência, feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em geral não passa daí, a não ser que aconteça, entre os números crescentes de feminicídio, um que se enquadre nos critérios de “noticiabilidade”. Mas este é um outro assunto.
Nas andanças da pesquisa, encontrei coisas estarrecedoras - desde escola de princesas para ensinar às meninas, desde muito cedo, a se comportarem como tal; bailes de debutantes promovidos pelas UPPs (lembram delas?) nas comunidades pobres, com atores globais encenando o papel de “príncipe”; depoimentos de mulheres que continuam ligadas afetivamente a seus parceiros apesar da violência; depoimento de meninas da pré-escola afirmando que "se não casar, não é princesa". E por aí vai.
A literatura especializada no tema, em diferentes áreas de conhecimento, traz muitas explicações para os complexos mecanismos que desembocam na tragédia, mas indicar a rota de fuga que é bom, nada.
É claro que também estou tateando a saída como todos os pesquisadores mas, por enquanto, até as evidências não passam de meros indícios. Isso sempre me lembra um conselho que recebi em um passado distante: “se tem pressa, busca o caminho mais longo”. É assim na ciência: a pressa que decide pelo percurso mais curto pode ajudar a produzir paliativos; mas se pretende uma solução sustentável, o caminho mais longo é o mais seguro. A indústria farmacêutica é pródiga em tomar atalhos, eximindo-se dos efeitos colaterais com bulas extensas, como quem diz “eu avisei, então o problema é seu".
E aí chegamos a um ponto crítico: pesquisas para pílulas anti-amor. Tenho resistido a tocar neste assunto, para não acabar acordando o que parece estar quieto. A indústria farmacêutica é rápida e voraz, como temos visto agora na pandemia (não é hora de comentar sobre isso). A lógica é simples: se há sofrimento, tem que haver doença, e se há doença, os laboratórios produzem um remédio e vendem por um bom dinheiro, que justifique o investimento na pesquisa.
E foi assim que surgiu essa história de “biotecnologia anti-amor”. Os cientistas convidados a analisar as implicações éticas da droga mais parecem propagandistas de laboratório, quando concordam com a aplicação em caso de mulheres que não conseguem se libertar de seus amores bandidos; para o controle do impulso sexual de pessoas que pertencem a religiões que proíbem sexo e/ou casamento, entre outras sugestões bizarras.
Quem quiser saber mais sobre o assunto pode começar justamente pelo artigo dos cientistas do centro de Ética em Biotecnologia da Universidade de Oxford: “If I Could Just Stop Loving You: Anti-Love Biotechnology and the Ethics of a Chemical Breakup”.
Aos interessados, recomendo muito cuidado, porque os efeitos colaterais de adesão a esta proposta da indústria farmacêutica podem ser muito danosos para a espécie humana. Mas como o artigo foi publicado em 2013, no The American Journal of Bioethics, pode ser que a pílula anti-amor já até esteja sendo usada - vai saber o que acontece quando o propagandista entra no consultório médico, para irritação dos pacientes na sala de espera.
Acho que agora já dá para pagar o mico do sonho com Roberto Carlos. Vou tentar ser sucinta e compreensível - o que já é muito difícil em se tratando de sonhos. Pois bem: eu estava em uma espécie de praça onde aconteceria um evento, do tipo quermesse ou algo assim. De repente, um garoto pega as chaves do…Roberto Carlos, que estavam sobre uma mureta. Até aí o rei Roberto ainda não havia aparecido no sonho, e quando apareceu tinha a aparência de uns 25 anos. Fui atrás do garoto e recuperei as chaves. Lembro de sentir que deveria fazer isso porque o RC era um deficiente… a coisa da perna e tal. Quando fui até ele entregar a chave, ele me abraçou e começamos a dançar suavemente. Não estou querendo amenizar o mico, mas lembro de ter achado aquilo estranho, embora deva confessar que era agradável.
E quanto mais agradável ia ficando, mais as questões da pesquisa me vinham à mente. Então perguntei se ele era mesmo um romântico ou se aquilo era só na música. Ele respondeu, delicadamente, aconchegando meu rosto ao seu peito, que era uma fórmula, e que se a primeira deu certo, então era só repetir, repetir, repetir… Sim, ele ficou repetindo a palavra repetir. E foi aí que acordei.
Acordei e resolvi compartilhar, não exatamente o sonho, mas a pesquisa. Penso muito em abrir um canal para compartilhamento da tarefa com o público interessado em contribuir como cidadãos e cidadãs cientistas não-profissionais. Quem sabe possamos encontrar a saída, antes que o problema acabe na proposta aterradora da castração química do amor pela indústria farmacêutica.
Sei que, ao lançar a proposta, corro o risco de passar algumas semanas sofrendo de complexo de inferioridade e rejeição. Mas a vida acadêmica, no final da contas, é mesmo feita disso. Um dos sociólogos/filósofos que me encorajam à ousadia é Alfred Schütz - ele diz que o pesquisador tem que estar no mundo da vida, fora dos laboratórios, lá onde a realidade acontece, com as pessoas que vivenciam o que se pretende pesquisar. E tem uma frase dele que acho ótima, quando insiste na valorização do conhecimento tácito, não cientifico: “somos todos sociólogos em estado prático”. Acredito nisso.
Está feito o convite. Alguém se habilita a ser pesquisador voluntário e ajudar a encontrar a rota de fuga do vale das princesas? Não? Tudo bem; também aceito decifração de sonhos, se houver alguém versado nesta arte entre os meus poucos e indispensáveis leitores.
Até mais então!
Adorei o texto e fiquei chocada com a possibilidade do medicamento anti-amor.