O IS sobre empréstimos para o exterior: como não resolver uma questão estrutural em cem anos

O IS sobre empréstimos para o exterior: como não resolver uma questão estrutural em cem anos

No que respeita ao âmbito de incidência territorial, o Código do Imposto do Selo estabelece, como regra geral, que se encontram sujeitas a imposto as operações “ocorridas em território português”.

Não é difícil adivinhar que a mera referência a operações “ocorridas em território português”, sem qualquer densificação ou exemplificação adicional, seria uma potencial fonte de dúvidas interpretativas, principalmente em face da configuração atual do Imposto do Selo, que se caracteriza maioritariamente pela tributação de operações desmaterializadas (em claro contraste com a sua matriz original, de imposto sobre documentos ou papéis).

As limitações desta formulação são evidenciadas pela necessidade que o legislador tem vindo a sentir de introduzir sucessivas clarificações expressas na norma de territorialidade, sempre que são adicionadas novas operações à base de incidência do imposto.

No entanto, no que respeita à territorialidade das operações de crédito, que constavam já do antigo Regulamento do Imposto do Selo de 1926 e respetiva tabela geral, de 1932, não foi, até à data, introduzida qualquer clarificação. Relativamente a estas operações, a regra geral referida acima é apenas complementada pela menção de que “São, ainda, sujeitos a imposto”, os créditos concedidos de fora para dentro do nosso território.

Assim, uma questão que desde sempre se levantou é perceber se uma operação de financiamento de uma entidade residente a uma entidade não residente se considera “ocorrida em território português” (e, consequentemente, se deve ou não ser sujeita a Imposto do Selo), dado que não é claro, neste tipo de operações, qual o elemento de conexão territorial que deve ser utilizado.

E a verdade é que, por incrível que pareça, à data de hoje, volvidos quase 25 anos desde a publicação do atual Código do Imposto do Selo e praticamente 100 anos desde o Regulamento original, esta questão continua a ser discutida na jurisprudência nacional, não existindo uma doutrina dominante e uniformizadora.

É certo que a justificação para esta questão estar ainda em aberto residirá, em parte, na própria mecânica intrínseca do Imposto do Selo (em particular o facto de o sujeito passivo, i.e., quem tem a responsabilidade pela liquidação e pagamento, não ser quem suporta o encargo do imposto), que terá impelido os sujeitos passivos (por excelência, as instituições de crédito) a aplicarem o procedimento mais prudente e alinhado com a visão da AT, i.e., liquidar Imposto do Selo sobre os créditos concedidos a não residentes (assim reduzindo grandemente o número de litígios levados até aos nossos tribunais).

Ainda assim, se olharmos para as decisões publicadas nos últimos 10 anos pelo Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), pelos Tribunais Centrais Administrativos (“TCA”) e pelo Supremo Tribunal Administrativo (“STA”), é possível identificar pelo menos 21 decisões que se pronunciaram diretamente sobre este tema.

A discussão tem girado essencialmente em torno da alteração do paradigma de tributação das operações de crédito introduzida pela reforma do Código do Imposto do Selo ocorrida em 2000 (na sequência da qual foi colocado um maior pendor sobre o momento da utilização de crédito em detrimento da celebração do negócio jurídico de concessão de crédito) e a forma como a mesma terá afetado ou não a regra de territorialidade destas operações.

De um lado, defende-se que esta alteração de paradigma implicou que o elemento de conexão territorial determinante nas operações de crédito passasse a ser o local onde se verifica a utilização do crédito (defendendo, consequentemente, que as operações de crédito de uma entidade residente para uma entidade não residente se encontram excluídas do âmbito de incidência territorial do Imposto do Selo, dado que a utilização não ocorre em Portugal).

A outra corrente interpretativa (defendida pela AT), entende que, mesmo após a reforma de 2000, o elemento essencial da incidência de Imposto do Selo nas operações de crédito continuou a ser o momento da concessão de crédito (devendo ser esse o elemento de conexão territorial relevante), ainda que a obrigação tributária nasça apenas quando ocorre uma efetiva utilização de crédito. Para esta corrente interpretativa, o facto tributável continua a ser a concessão de crédito, havendo apenas um diferimento da cobrança do imposto para o momento em que ocorre a utilização. Consequentemente, nesta visão, operações de crédito de uma entidade residente para uma entidade não residente encontram-se necessariamente abrangidas pelo âmbito de incidência territorial deste imposto, devendo ser tributadas.

O saldo entre estas duas posições, vertido nas 21 decisões acima referidas é o seguinte:

  • CAAD (14 decisões): 9 defendendo a incidência de Imposto do Selo sobre empréstimos concedidos por entidades residentes a entidades não residentes; 5 defendendo a não incidência;
  • TCA (4 decisões): 3 defendendo a incidência de Imposto do Selo sobre empréstimos concedidos por entidades residentes a entidades não residentes; 1 defendendo a não incidência;
  • STA (3 decisões): todas elas defendendo a incidência de Imposto do Selo sobre empréstimos concedidos por entidades residentes a entidades não residentes.

Como se pode verificar, a contagem pende de forma clara para a linha argumentativa que defende a inclusão das operações de crédito concedido por uma entidade residente a uma entidade não residente no âmbito territorial do Imposto do Selo (mais de 70% das decisões vão nesse sentido, ao que acresce a posição unânime do STA).

De facto, entre meados de 2022 e meados de 2023 todas as 6 decisões tornadas públicas perfilharam este entendimento, o que fazia prever que a questão estaria, em definitivo, resolvida.

No entanto, as duas decisões publicadas desde então, ambas do CAAD (a última das quais datada do passado mês de março) vieram defender o inverso, i.e., a não inclusão das operações de crédito concedido por uma entidade residente a uma entidade não residente no âmbito territorial do Imposto do Selo, voltando a abrir a discussão.

O STA já foi instado pelo menos duas vezes a efetuar a uniformização desta questão em sede de recurso por oposição de acórdãos (num dos casos apresentado por um contribuinte e no outro pela AT), tendo, em ambos os casos, rejeitado analisar o pedido, no que pareceram interpretações demasiado restritivas dos requisitos de admissão a esta via de recurso.

De facto, com o número de decisões já publicadas em sentidos opostos (nomeadamente após 1 de janeiro de 2020, data em que passou a ser permitido o recurso para o STA de decisões do CAAD em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com outra decisão arbitral ou com acórdão proferido pelo TCA ou pelo STA) é difícil de compreender que esta questão ainda não tenha sido uniformizada e resolvida, com os inevitáveis custos de contexto para todos os envolvidos.

Veja-se que não estamos perante uma discussão em torno de um pormenor lateral da caracterização do imposto (que pudesse ser negligenciado, por ser de importância menor) ou de alguma inovação recentemente introduzida na Lei (que ainda pudesse estar a ser densificada por todos os intervenientes).

Estamos perante uma questão estrutural, que existe desde a origem do Código e que diz respeito às operações que mais contribuem para a sua receita (de acordo com os dados estatísticos mais recentes do Instituto Nacional de Estatística a respeito da carga fiscal em Portugal, o Imposto do Selo sobre operações bancárias representa cerca de 40% da receita anual de Imposto do Selo  - cerca de 700 milhões de euros de um total de 1.875 milhões de euros).

Se atendermos apenas ao stock atual de empréstimos concedidos pelos Bancos portugueses a entidades não residentes, de acordo com a informação estatística mais recente publicada pelo Banco de Portugal, estamos a falar de incluir ou não incluir na base de incidência do imposto aproximadamente 23 mil milhões de euros.  

Como última nota, não podemos deixar de notar que a incidência de Imposto do Selo nos empréstimos ao exterior coloca as instituições financeiras portuguesas em pé de desigualdade com as suas congéneres não residentes (o Imposto do Selo sobre o crédito é uma realidade “quase” exclusivamente portuguesa), sendo até apontada como uma das causas principais da falta de competitividade do sector no financiamento ao exterior.

Como em tantos outros casos, o problema original terá estado na redação infeliz da norma, mas o verdadeiro motivo de preocupação reside no facto de ainda não termos tido a capacidade de o resolver. De quantos mais anos necessitaremos?


#Deloitte #Deloittetax #Taxlab #ImpostodoSelo

Philippa Soares Franco

Senior Associate | Associada Sénior at VdA Vieira de Almeida

7 m

👏🏻👏🏻

Excelente resenha! A redução da litigiosidade fiscal passa por isto: identificar as áreas de conflito e invectivar à solução, seja a uniformização jurisprudencial, seja a alteração legislativa. Uma outra área massacrante, com um potencial devastador, capaz de desgraçar toda a vida financeira das pessoas singulares, pois as atinge no evento financeiro mais relevante das suas vidas (a venda da habitação própria e permanente), é o regime do reinvestimento das mais-valias imobiliárias em IRS. É de uma enorme insensibilidade social o legislador não solucionar todas as dúvidas e problemas que este suscita (agora agravados pelo "Mais Habitação"). Também essa é uma questão estrutural!

Bruno Soares Franco

Consultant for Solar Energy and Energy Efficiency Projects na PowerYield

7 m

Bem escrito Tomás !

Muito bom trabalho. Creio que não deve incidir IS, a fundamentação não me convence, designadamente quanto ao local da utilização, pois penso (já o escrevi) que a realidade tributável será a operação de concessão de crédito e não a utilização do dito.

Diogo Pires

Associate Partner na Deloitte Tax M&A Real Estate

8 m

Excelente artigo Tomás! Um abraço

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