“O “Super-Homem” vs. os Paradoxos do Fator Humano”

“O “Super-Homem” vs. os Paradoxos do Fator Humano”

Numa época marcada pela globalização, e que se caracteriza por mudanças macroeconómicas e pela intensificação dos imperativos de competitividade das empresas, houve necessidades destas adotarem novas formas de organização do trabalho.

São conhecidos os pontos-chave das novas estratégias: polivalência, equipas autónomas, prazos reduzidos, qualidade, satisfação do cliente, constituem alguns exemplos que impõem novos referenciais de performance, quando estão em causa novas matrizes de relacionamento comercial assentes na maximização do nível de serviço, nas evoluções da procura, no foco no cumprimento de prazos, na melhoria contínua.

Numa nova era organizacional, onde pontuam a autonomia, a iniciativa, a flexibilidade e a criatividade, todo o indivíduo é convidado a avaliar e a aperfeiçoar as suas competências ("reskilling"), mas também a investir pessoalmente, a empenhar-se num processo contínuo, a ser participativo, a envolver-se. A necessidade de desenvolver aptidões manifesta-se a todos os níveis das empresas: os próprios gestores são implicados e as funções de chefia e liderança deverão permitir melhorar a capacidade de escutar, refletir, resolver problemas, julgar e decidir.

De facto, não se trata apenas do espaço objetivo das empresas, mas também do próprio espaço mental que agora se constrói sob os auspícios da competição e do desafio que cada um de nós lança a si próprio para “ganhar”, “ser o melhor”, “ultrapassar-se”.

No entanto, se as pressões inerentes à competitividade são inegáveis, a ideia de uma época convertida à religião dos desafios e da competição não se afigura muito convincente e perdeu atualidade. No meu entendimento, o momento é de viragem, sendo claramente um ponto de não retorno.

O correr riscos, os desafios, a superação constante de si mesmo impõem-se como “fatores de felicidade pessoal” para candidatos a “Super-Homem”[1]? As dúvidas mantêm-se até porque o sentimento dominante é de que “a vida não é só trabalho”.

Queremos melhor prova do que nos conferiu e ainda confere o trabalho remoto, o confinamento que nos impôs uma pandemia?

Neste novo normal que tende a impor-se, os tempos são de conciliação, compreensão da amplitude entre vidas pessoal, familiar e profissional, em que a liberdade rima com responsabilidade, tendo voltado a falar-se de uma semana de trabalho de 4 dias.

Assistimos hoje à consagração dos prazeres do tempo livre e da vida relacional, o que, de alguma forma, tende a secundarizar a importância litúrgica do fator trabalho, sem com isso descurar objetivos, resultados e, por inerência, o lucro que sustenta empresas e famílias.

De igual modo, não deixa de ser certo de que os indivíduos continuam, em larga medida, a definir-se através da sua profissão, como um vetor central de estruturação da vida pessoal e social. E, ainda que a felicidade pessoal polarize cada vez mais as aspirações dos indivíduos, o trabalho continua a ser um verdadeiro mediador de auto-estima, o primeiro produtor de identidade social.

Mas, atente-se que o centro de gravidade da vida mudou para a solitude da esfera privada, onde evoluem ideais e valores que se aliam às demandas do lazer e do desenvolvimento individual. Aqui concorre um desejo íntimo do indivíduo que (já) não é superar-se mas poder usufruir de um rendimento confortável para participar no universo das satisfações que o mercado oferece.

Concretizando, “os novos trabalhadores dos tempos modernos” não se revêem nas novas técnicas de gestão do capital humano, assentes em promessas de felicidade, quando pressentem insegurança profissional, dificuldades e pressões acrescidas. Esta nova gestão surge indelevelmente associada a uma maior precarização do vínculo laboral com a subjacente redução das proteções coletivas e a degradação das relações de trabalho. Ameaças de despedimento, burn out, stress agravado, baixos salários, intensificação das responsabilidades e ritmos de trabalho, receio permanente de não estar à altura das novas tarefas, eis a paisagem socio-laboral do futuro para a qual a gestão do Fator Humano será demasiado crítica para não ser levada em conta na boa governação das empresas.

A emergência do Fator Humano, tão falada nestes novos tempos mas, de igual modo, tão pouco integrada na maioria do nosso tecido empresarial, assume, neste contexto, maior acuidade quando aliada à insegurança profissional e identitária, surge a perda de auto-estima, a que se seguem, invariavelmente, a desmotivação, a desatenção, a angústia no local de trabalho.

Enquanto a maioria dos trabalhadores não se revê no culto da performance, sobressai o medo, assente numa ansiedade subterrânea, numa tensão silenciosa, numa desconfiança latente que afasta níveis hierárquicos, áreas e serviços que operam em cadeia processual e respondem pelo bem comum do negócio e que, a jusante, apenas acarreta fatores de risco acrescido para a saúde dos trabalhadores.

Estes vários paradoxos vêm tornar primordial o facto do indivíduo querer estar numa organização que o faça “sentir-se bem”, num ambiente “simpático” em que as pessoas sejam respeitadas e os méritos de cada um reconhecidos. Ora, quando se intensifica a obrigação de “fazer mais com menos”, e constatamos no universo empresarial que a qualidade de vida no trabalho está no topo da agenda socio-laboral das organizações e onde muitas delas exibem (ou pretendem) o selo de organização socialmente responsável, quais os pesos e as medidas dum indivíduo numa organização?

Esta é a pergunta que vale um milhão de dólares:

Será a auto-superação constante digna de criar um novo modelo personalístico (”Super-Homem”) de forma a remeter para segundo plano o papel do hedonismo, do consumismo, do narcisismo nos indivíduos que extravasam as fronteiras das organizações onde trabalham, miscigenando as suas crenças e valores num conceito mais alargado de cidadania organizacional?

Entre limites e limitações, haverá sempre espaço para as exceções e se tivermos que eleger a competência distintiva entre cidadãos, empresas e demais agentes e operadores do mercado, e que possibilitará a ascensão de um novo modelo organizacional equitativo, claramente opto pela Empatia!

[1] O super-homem é aquele que vence o niilismo, supera a forma homem, velha e desgastada, supera todos os humanismos, toda a cultura que o prende em si mesmo, é ele quem “lança a flecha do seu anseio por cima do homem” (Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 18). A afirmação do super-homem é a negação dos valores vigentes: ousadia no lugar de segurança, auto-disciplina ao invés e auto-piedade, esquecimento em vez de ressentimento.

by Nuno Silva




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