O trabalho liberta? Uma reflexão sobre o modelo de trabalho na saúde.
Até quando vamos ignorar que:
• Médicos tem 2x mais risco de suicídio que a população geral segundo dados de uma pesquisa do Medscape;
• Quase 70% dos médicos já apresentaram sintomas de depressão;
• 56% deles apontam como principal fator de estresse as condições de trabalho;
• Quase metade dos médicos entrevistados afirmaram que suas instituições empregadoras não limitam jornadas de trabalho maiores do que 24h.
Os últimos 3 dados são referentes a pesquisa de saúde mental do médico, conduzido pelo research center da Afya.
Zoom in.
Se dermos um zoom na realidade de residência médica, o cenário é ainda pior. As jornadas de trabalho, principalmente em especialidades cirúrgicas, podem chegar a 80-100 horas semanais.
Além do volume de trabalho sobre-humano, os bastidores hospitalares são ambientes que pregam, em muitos casos, costumes medievais. Assédio moral, abuso de poder e humilhações de todos os tipos são parte da rotina durante a formação do médico no Brasil.
Não sei se por conta de resignação, medo de retaliação ou qualquer outro motivo, o jovem médico vai se acostumando com esse tipo de ambiente a ponto de naturalizá-lo.
Cria-se uma cultura do Ode ao Sacrifício, quando o assunto é trabalho. Não foram poucas as vezes que presenciei conversas em que meus colegas comparavam quem trabalhava mais:
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"Estou há 48 horas de plantão".
"Estudei a madrugada inteira e só dormi 40 minutos".
Criamos a tempestade perfeita para o abuso de substâncias estimulantes - estudos reportam um prevalência de uso de Ritalina e análogos chegando a 47% em algumas populações de estudantes de medicina segundo o estudo "Stimulant Usage by Medical Students for Cognitive Enhancement: A Systematic Review".
Não esqueça de acrescentar à conta a privação de sono, o estresse, a ansiedade e o ambiente de extrema pressão, pela natureza da profissão.
Como resolver?
Se você me acompanhou até aqui, é óbvio que tudo que relatei tem uma relação de causa e efeito.
No meio desse contexto, a solução proposta é que com o trabalho duro você se liberta dessa condição. Que se você se comportar bem e fizer aquilo que foi mandado, sem questionar, as coisas melhoram lá na frente. Que ano que vem não é você que vai passar por isso, mas sim seu colega mais novo. E claro, que "na época deles era pior e que essa geração mais nova tem muito mimimi".
Podemos sim entrar em uma discussão geracional, mas não podemos ignorar o fato de que enquanto apontamos dedos uns para os outros, médicos e estudantes de medicina estão tirando sua própria vida por não conseguirem suportar essa realidade lamentável.
Não acho que a solução seja trivial. Nem tenho expectativa que esse simples artigo tenha esse poder. Mas acredito que ela vem de dentro para fora. Envolve menos cobrança e mais empatia. Menos competição e mais apoio.
A pergunta que deveria estar na cabeça de nós, médicos, é “como posso tornar meu ambiente de trabalho e dos meus colegas de profissão um pouco mais leve?” e não “como que eu vou dar conta de mais uma semana assim?”
A frase do início desse texto não é a toa. "Arbeit macht frei" em alemão, é uma frase que significa "o trabalho liberta". Essa frase estava no portão de entrada de Auschwitz.
E aqui, por favor, não entenda como uma comparação da atrocidade desse período com o que presenciamos na medicina atual. Mas um lembrete de que ignorar o que está diante de nossos olhos é muito perigoso. Para todos nós.