O traficante e o ministro

O traficante e o ministro

Permita o leitor que me manifeste como cidadão comum, desvestido da beca de advogado. Sou pai, avô, tenho família e amigos entre a gente do povo. Pessoas que se levantam de manhã para o trabalho e voltam à noite, deixando três ou quatro horas de vida por dia no trânsito.

Para o povo a vida nunca foi fácil. Além das dificuldades conhecidas e dos riscos da pandemia, sofre com a violência, o tráfico de drogas e a audácia do crime organizado. Deseja acreditar na justiça e espera que a polícia, promotores, juízes, desembargadores e ministros façam jus aos vencimentos, apliquem a lei com inteligência e atuem com honestidade.

Nestes dias os holofotes se voltam para o Supremo Tribunal Federal. O habeas corpus deferido pelo ministro Marco Aurélio ao traficante André do Rap é estarrecedor e inexplicável. Algo impossível de se admitir de um membro da mais alta Corte do Poder Judiciário. Gerou no povo sentimento unânime de indignação e repulsa.

Apesar da crise que assola o STF, vítima de disputas pessoais e da vaidade, jamais se imaginou que o chefe do crime organizado, condenado em duas instâncias a muitos anos de reclusão, conseguisse obter em poucos minutos alvará de soltura e se safasse da penitenciária de segurança máxima pela porta da frente, para tomar rumo ignorado.

A pronta reação da Corte, presidida pelo ministro Luiz Fux, atenua, mas não resolve a questão. Até quando o povo suportará que coisas assim aconteçam? Quem acompanha as sessões observa que o STF é integrado por 11 correntes distintas. Sabe como medidas liminares são precipitadamente concedidas e não desconhece pedidos de vista apresentados com intuitos protelatórios.

O ministro que sucederá a Celso de Mello terá a responsabilidade de participar do resgate da credibilidade da Alta Corte. A indicação do desembargador Kássio Marques revela que o presidente Jair Bolsonaro não dá importância ao assunto. Alheio à vida do Poder Judiciário, ignora as relevantes atribuições do Supremo na defesa do povo e do Estado Democrático de Direito. O desembargador indicado apresentou currículo inconsistente, contendo informações duvidosas. Talvez não seja pessoa de ilibada reputação. Sobre o notável saber jurídico pouco se conhece.

O cargo de ministro do Supremo exige conduta inflexível e caráter inquebrantável. Como será o STF nas próximas décadas? É impossível prever. A história da instituição revela altos e baixos, sobretudo em momentos de crise.

Identificar jurista com as qualidades de Moreira Alves, Sydney Sanches, Carlos Velloso, Paulo Brossard será difícil, mas não impossível. Caberá ao Senado evitar a nomeação de alguém que não se encontra qualificado. A designação pertence ao presidente Jair Bolsonaro, mas a aprovação é de responsabilidade dos senadores, dos quais o povo cobrará, se mais uma vez for enganado.

— Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Ex-ministro, do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.

Os Divergentes 16/10/2020


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