OLAVO DE CARVALHO E A RASPADINHA DA EVOLUÇÃO
Zeca Oliveira*
“Escrevi este livro na convicção de que nossa existência já foi o maior dos mistérios, mas deixou de sê-lo. Darwin e Wallace o desvendaram”.
Com estas palavras o eminente biólogo evolucionista Richard Dawkins inicia seu fabuloso livro “O Relojoeiro Cego” (Ed. Companhia das Letras). Indiscutivelmente o mais expressivo divulgador da ciência desde as mortes de Carl Sagan e Stephen Jay Gould, Dawkins sofre no Brasil a mesma oposição que o atinge no restante do mundo, notadamente por parte dos criacionistas e de muitos ditos intelectuais de direita; os primeiros incapazes de distinguir a realidade daquilo que desejam que a realidade seja; os últimos utilizando-se da abordagem pueril e caricata das idéias evolucionistas como um artifício político para denegrir o pensamento progressista. Nesta segunda categoria, destaca-se o autointitulado filósofo Olavo de Carvalho, muito em voga ultimamente pela influência ideológica que tem exercido naquilo que se convencionou chamar de “governo” no Brasil. Com efeito, sua inegável capacidade de elaborar sofismas adornados por uma erudição convincente costuma impressionar leitores imprudentes.
As críticas ao Sr Olavo aqui veiculadas representam uma síntese do que foi possível concluir a partir da leitura de três textos seus, dois deles publicados no jornal O Globo: Impostura Darwinista, Menti para os leitores e Porque não sou fã de Charles Darwin, este último também publicado no livro "O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota"; presumivelmente adquirido por aqueles que se identificam com tal ambição.
Os referidos textos podem ser lidos no Website do autor (www.olavodecarvalho.org); ao lê-los, a impressão que se tem é que foram tantas as tentativas de tentar desmascarar supostos impostores intelectuais, que o Sr Olavo de Carvalho cansou-se; jogou a toalha e passou a empregar as mesmas táticas que ontem condenava. Sua tentativa de denegrir o evolucionismo é fundamentada na crítica oportunista e leviana ao trabalho de Richard Dawkins, entusiasta do Evolucionismo e crítico fervoroso da violência perpetrada pelas religiões mas que, no âmbito dos devaneios argumentativos do sr Olavo, transforma-se num mero pretexto para que ele tente nos fazer crer que o evolucionismo foi o pai do nazismo e do fascismo. Por um lapso lógico semelhante, o Sr Olavo não relutaria em atribuir a Isaac Newton a paternidade dos desastres aéreos.
O Sr Olavo também atribui errônea e explicitamente a Dawkins a tese de que inexistem causas para a origem dos seres vivos. Àqueles familiarizados com sua obra, certamente soaria como uma surpresa a inesperada defesa de tamanho disparate. Ora, Dawkins afirma, exatamente, que inexistem causas metafísicas para a origem dos seres vivos, a exemplo daquilo que igualmente sustenta para o processo de evolução da vida, em particular, e para a fenomenologia do mundo, de forma geral. Mas a supressão daquele detalhe fundamental por parte do Sr Olavo, termina por inverter totalmente a concepção do cientista dada a relação auto-excludente partilhada pelas teorias científicas e metafísicas.
Mas o Sr Olavo não para por aí. Examinemos a leitura que fez do experimento da frase de Hamlet, proposto por Dawkins em “O Relojoeiro Cego”, entre as páginas 78 e 83.
A experiência consiste em fazer que um computador, simulando alguém que digita aleatoriamente no teclado, escreva a frase "Methinks it is like a weasel". A intenção de Dawkins é demonstrar que a probabilidade da frase se formar por obra do mero acaso é infinitamente pequena (1/27 elevado à potência 28!). Neste ponto, o Sr Olavo fechou o livro convicto de que a Teoria da Evolução, uma das mais fantásticas conquistas do intelecto, não é mais do que uma raspadinha da sorte.
Na segunda parte do experimento, sem a qual este perde totalmente o sentido, Dawkins usa um dispositivo não aleatório, análogo ao da seleção natural, a “seleção cumulativa”. Com esta estratégia, uma vez obtida a posição correta de determinada letra na sentença, a letra ficará preservada para a rodada seguinte; uma analogia à capacidade do DNA estocar aquilo que se revelou evolutivamente eficiente. O aumento nas probabilidades de sucesso foi excepcional; somente por este processo Dawkins pode finalmente obter a sentença correta. Trata-se de outro fato fundamental que o Sr Olavo ignora e, com isso, subverte a argumentação de Dawkins, promovendo a calúnia com base num sofisma simples, elaborado ou por desconhecimento ou por artimanha. A primeira alternativa o torna incapacitado para discutir a obra de Dawkins; a segunda, transforma-o, ironicamente, num manipulador jocoso dos conceitos Aristotélicos, dos quais se intitula especialista.
Oportuno ressaltar, ainda, que aquela analogia não foi elaborada para provar nenhuma teoria científica mas para propiciar aos leigos uma razoável ideia de como operam os mecanismos da seleção natural. Funcionaria com outra frase e em outra língua, a despeito das chacotas infundadas do Sr Olavo. Sua única limitação é induzir que a evolução possa ter um sentido pré-concebido, o que não é verdade e é convenientemente esclarecido a quem leia o livro até o fim. É evidente que a frase é a representação simbólica do código genético de um organismo. Ao propor, subliminarmente, que se faça um julgamento definitivo acerca de Dawkins com base exclusivamente naquilo que ele escreveu para o público não especialista, o Sr Olavo, ardilosamente, transforma o excelente divulgador de ciência que Dawkins é, no péssimo cientista que ele não é.
Contrariando exatamente o argumento central do sofisma promovido por Olavo, é incontestável que aquilo que Dawkins pretende demonstrar com a experiência da frase de Hamlet é, justamente, como a complexidade da vida não pode ser obra do acaso! De fato, é uma característica marcante da obra de Dawkins o seu empenho em convencer os leigos, como o Sr Olavo, a abandonar a falácia de explicar a evolução como oriunda do mero acaso. Como a complexidade da vida é a própria antítese do acaso, a noção de acaso e aleatoriedade erroneamente associada ao evolucionismo sempre foi um importante obstáculo para a sua compreensão. Não é por acaso, portanto, que criacionistas e oportunistas, (se é que nos cabe promover uma diferenciação tão irrisória), adulterem reiteradamente a Teoria de Darwin exatamente neste aspecto particular. De uma vez por todas: a teoria da Evolução é o anti-acaso; associar o acaso com ela é uma distorção comparável a de transformar em pretexto para as barbáries nazifascistas uma teoria que, se adequadamente compreendida, é um verdadeiro culto à preciosidade da vida.
Como é que o sr Olavo de Carvalho pretende inspirar-se em Richard Dawkins para escrever sobre a tal “paralaxe cognitiva” se ele próprio não conseguiu dar o salto cognitivo fundamental que distingue aquele que julga compreender a Teoria da Evolução, do genuíno entendedor das idéias evolucionistas? Não seria, afinal, sua própria incompreensão acerca do status que o acaso possui no âmbito do pensamento de Dawkins a verdadeira responsável pelo monstro evolucionista “com duas cabeças” que o Sr Olavo criou usando metade da sua? E não seria a tentativa de desmerecer a obra de um cientista como o Dr Dawkins com base no desconhecimento e na mentira uma das piores imposturas intelectuais? (para aproveitar aqui uma expressão sua e devolver-lhe a deselegância).
Mas o sr Olavo afunda uma vez mais na lama da própria argumentação. Seu desprezo pueril pelos biomorfos criados em computador revela que ele não só desconhece o processo da seleção natural mas também não entende minimamente o papel da informática na pesquisa científica moderna.
Senão vejamos.
Os metafísicos sustentam que ao encontrarmos um relógio na floresta seria razoável admitir a existência de um relojoeiro. A pertinência e a lucidez deste argumento sempre foi motivo de inquietação para o espírito científico. O alto grau de estruturação da vida sempre clamou por uma explicação; o fato de qualquer célula viva ser muito mais complexa do que qualquer coisa inorgânica exigia um Criador, um “relojoeiro”. Vista sob esta perspectiva, percebe-se a dimensão do golpe desferido na metafísica por Charles Darwin, ao propor que as estruturas mais complexas do universo conhecido evoluíram a partir de uma “simplicidade primordial”. Torna-se evidente, da mesma forma, a razão pela qual o ensino do evolucionismo ainda é proibido em muitas escolas religiosas ao redor do mundo.
Ora, o advento da computação permitiu a Dawkins colocar à prova os pressupostos da Teoria da Evolução à luz dos modernos conhecimentos da genética, inexistentes à época de Darwin (Mendel foi contemporâneo de Darwin, mas não consta que tenham trocado idéias). Para tal intento, Dawkins elaborou um software para modelar a variabilidade morfológica dos seres vivos ao longo de incontáveis gerações. A simulação demonstrou ser possível gerar complexidade a partir de um arranjo inicial bastante simples, comprovando a viabilidade da seleção cumulativa a partir de um experimento que levaria milhões de anos para ser realizado na natureza. Iniciando com um simples ramo bifurcado e causando modificações sucessivas num conjunto de apenas 9 genes, Dawkins gradativamente obteve formas tão variadas quanto árvores, insetos e pássaros!
E aí sim, Sr Olavo de Carvalho, quod erat demonstrandum.
Desconheço como anda a votação para Imbecil Coletivo do ano 2020 mas, por todas essas, o Sr Olavo bem que merecia sentar no próprio trono que criou.
* Geólogo formado e pós-graduado pela UFRGS, pesquisador na Unisinos.
Geofísico/Geólogo na Petrobras
4 aParabéns pela determinação de racionalizar o debate com o "cavaleiro-mor medieval" e de se contra por firmente às ideias obscurantistas vigentes. Os cientistas devem sair da academia e enfrentar os charlatões de plantão. Obrigado por fazê-lo.
Professor of Structural Geology & Tectonics
4 aParabéns Zeca ! Mas naoo precisava queimar tanta pólvora num chimango tao desqualificado quanto esse embora o evento com o Paraninfo da Comunicaçao da UNISINOS que mandaste agora demonstre a necessidade de esclarecer o público mesmo que ate sejam familiares de universitários... Isso tudo parece 1 pesadelo !!!
Professor at Universidade Federal do Rio Grande do Sul
4 aExcelente artigo, Zeca! A ignorância e a mistificação disfarçadas de erudição do Olavo de Carvalho me lembraram de uma divertida definição do que são Filosofia, Religião e Ciência. Filosofia é como procurar um gato preto em um quarto escuro. Religião seria como procurar um gato preto em um quarto escuro gritando de tanto em tanto: Achei! Ciência é como procurar um gato preto em um quarto escuro usando uma lanterna. É apenas uma ferramenta, um método para entendermos o Universo, mas é o que temos de melhor para isso. Filosofia, Religião e Ciência são partes importantes do pensamento humano, mas não devem ser misturadas. Os religiosos e os filósofos (apesar de eu não saber se esse termo pode ser aplicado a um ex-astrólogo obscurantista) não devem se meter a discutir Ciência, assim como os cientistas não devem misturar Religião ou Filosofia quando pesquisam. A separação entre os três ramos do pensamento humano permitiu avanços extraordinários na qualidade e quantidade de vida das sociedades onde isso ocorreu, e a atual maré de ignorância e superstição (criacionismo, terraplanismo, anti-vacina, racismo, etc.) representa uma ameaça séria de retrocesso, contra a qual todos devemos procurar atuar.
Geologist I Geoscientist
4 aExcelente artigo Zeca Oliveira .. uma pena que o obscurantismo que tomou conta do país faça cientistas brilhantes como o Richard Dawkins serem retratados como charlatões. Isso me lembra a famosa frase do grande Schopenhauer : "O conhecimento é limitado. Somente a estupidez é ilimitada"
Regulamento ANP//Geociências//Pesquisa e inovação//Caracterização de fluidos//Soluções analíticas P&D
4 aótima leitura!