Os juízes estão julgando com perspectiva de gênero

Os juízes estão julgando com perspectiva de gênero

A interpretação do título nos induz a erro, eu sei, mas a notícia é boa.

O Protocolo Para Julgamento Com Perspectiva de Gênero é um documento elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), liberado para divulgação e utilização em outubro de 2021.

Quais são os detalhes desse material?

O nome é grande e aparentemente complexo, talvez seu conteúdo e sua aplicação também, mas o material traz uma vertente inédita para o judiciário brasileiro, cuja finalidade é orientar juízas e juízes sob a forma como decidem ações que envolvem questões de gênero.

Basicamente, as pessoas em posição de julgamento e todas as demais operadoras do direito - advogados e servidores públicos, por exemplo - são orientadas a sair do lugar comum e analisar a situação por outra perspectiva para evitar vieses discriminatórios. 

A sugestão do Protocolo é que seja feita a seguinte pergunta:

"Mesmo não havendo tratamento diferenciado por parte da lei, há alguma desigualdade estrutural que possa ter um papel relevante no problema concreto?” 


Qual o objetivo do Protocolo?

Todas as diretrizes do Protocolo Para Julgamento com Perspectiva de Gênero foram cuidadosamente desenvolvidas para implantar no sistema judiciário brasileiro medidas eficazes de enfrentamento à violência contra a mulher, no país que ocupa o quinto lugar no ranking mundial de feminicídio (Fonte: ONU).

Além disso, fomenta a participação feminina em espaços onde ainda não ocupam com significância e expressividade, sobretudo no judiciário.

Interpretar o caso concreto de forma tradicional é o mesmo que colocar as partes de um processo numa mesma posição e considerar que todas elas partiram da mesma origem.

E isso faz com que sejam ignoradas as diferentes realidades e trajetórias de cada uma, tendo como consequência discrepância de oportunidades estabelecida na nossa sociedade entre homens e mulheres e o afastamento do princípio  isonomia (igualdade), um dos mais valiosos do nosso ordenamento jurídico.  

Essa não é a única motivação do Protocolo. Além do embasamento teórico e do chamamento à reflexão, o documento traz um apanhado de ideias práticas muito importantes e relevantes para serem aplicadas no dia a dia de quem sentencia.

Em um dos trechos “recomenda-se que a julgadora e o julgador se atenham à situação concreta, mesmo que casos pareçam neutros a gênero. [...] e se pergunte: é possível que desigualdades estruturais tenham algum papel relevante nessa controvérsia? A resposta só pode ser dada por meio de um olhar atento ao contexto”.

Qual sua efetividade na Justiça do Trabalho?

A Justiça do Trabalho é o ambiente jurídico perfeito para a aplicação deste Protocolo. Isso porque as relações de trabalho estão repletas de situações que expõem de forma escancarada a desigualdade de gênero, que vão desde o processo seletivo até o desligamento.

Em matéria trabalhista, o documento aborda a desigualdade

  • nas oportunidades, ingresso e progressão na carreira
  • no salário
  • na seleção automatizada em fase pré-contratual e no seu encerramento
  • no assédio moral e sexual no ambiente de trabalho
  • na segregação horizontal e vertical
  • na segurança e medicina
  • na discriminação pelas condições inerentes à de ser mulher, como o momento de estar gestante e/ou lactante.

Nós ainda vivemos reféns de um sistema onde impera a resistência na revisão dos métodos, e isso dificulta que o olhar se volte para novas possibilidades e que a tratativa das demandas seja personalizada para questões anteriormente desprezadas, como a de gênero.  

De acordo com o Protocolo:

Se pensarmos que mulheres, em geral, ganham 30% a menos do que homens, uma questão de gênero emerge [no âmbito do trabalho]”.

 E já temos visto a utilização do Protocolo como base para algumas decisões importantes em ações trabalhistas. Vejamos.

a) TRT 15ª (Campinas): uma mulher pediu demissão logo após voltar da licença-maternidade, mesmo estando no período de estabilidade de cinco meses após o parto. O motivo: não tinha com quem deixar o filho recém-nascido. O empregador aceitou o pedido de prontidão.

O caso foi levado à Justiça do Trabalho e os julgadores decidiram por anular o pedido de dispensa, porque há um grande recorte de gênero por trás da situação em análise.

Eles entenderam que não foi considerada a fragilidade de uma mulher no período de início da maternidade e que a ausência dessa perspectiva reforça ainda mais o molde de um sistema de trabalho que é pensado e estruturado pela ótica do sexo masculino.

“Embora discriminações contra gestantes e lactantes sejam vedadas pela legislação trabalhista, muitas mulheres ainda são vítimas de padrões pensados para o ‘homem médio’, por estarem inseridas num modelo de regras e rotinas de trabalho estabelecidas a partir do paradigma masculino”.

b) TRT 4ª (Rio Grande do Sul): 

Uma funcionária de uma concessionária de veículos fez o pedido, com urgência, de rescisão indireta (a justa causa aplicada na empresa) porque seu supervisor direto mantinha abordagem de assédio sexual no ambiente de trabalho, comprovadas por mensagem de texto e boletim de ocorrência. 

Inicialmente, a liminar foi indeferida, já que o assediador acabou sendo afastado e, conforme a decisão, por esse motivo o risco tinha cessado. Mas a trabalhadora entrou com Mandado de Segurança diretamente para o Tribunal e lá foi decidido que as “brincadeiras” de cunho sexual na cultura empresarial não devem ser normalizadas e precisam de punição proporcional à sua gravidade. A rescisão indireta foi concedida.

c) TRT 2ª (São Paulo): 

Uma mulher precisou se ausentar do trabalho por trinta dias, conforme recomendação médica, em razão de complicações de saúde que decorreram da sua gravidez. Durante o período de afastamento, manteve seu empregador informado e apresentou o atestado, mas mesmo assim foi demitida por justa causa após o término da licença, com a justificativa de abandono de emprego.

A Justiça reverteu essa demissão e aplicou a justa causa na empresa (rescisão indireta), por não ter sido caracterizado o abandono de emprego e porque não foram observadas as particularidades do caso, isto é, uma gestante com saúde debilitada em seu primeiro trimestre de gravidez. Ela não faltou porque quis, mas porque estava grávida e seu médico orientou que repousasse.

Essas situações escancaram o sexismo estrutural do sistema e a urgência em dar espaço para esse novo horizonte recomendado pelo Protocolo. O julgamento com perspectiva de gênero, portanto, é meio muito eficaz para amenizar e, com esperança, erradicar esse tipo de desigualdade.

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