OS MECANISMOS DO PROCESSO DE REPRESSÃO INSTAURADOS NA SOCIEDADE AGRAVADOS PELO SISTEMA CAPITALISTA.
Freud (2011) aponta o processo de dominação do individuo através do controle de repressão. Esse processo é inevitável, nos leva ao sofrimento e a infelicidade. Para viver em sociedade precisamos reprimir pulsões e instinto. Uma das formas de controle dos instintos é canalizar as energias para outras atividades, por exemplo, a sublimação (um mecanismo de defesa) que nos leva das decepções às distrações, das substituições das pulsões pela sublimação da arte, esporte, trabalho, ou fuga do sofrimento através de uso de entorpecentes (FREUD, 2011, Pag.: 22 e 23).
A civilização está fadada a contradições, partindo do princípio do prazer, que procuramos viabilizar ou proporcionar satisfação, ele é sobreposto pelo nosso principio de realidade, que é opressor, desumano e limitante (FREUD, 2011, pag. 19).
Através dos códigos de cultura, referindo-me a uma cultura colonizadora, somos incorporados a um processo de hierarquização, classificação e até mesmo de adjetivar. Os indivíduos precisam provar que não são coisas ou números, e sim seres humanos. Essa inserção na cultura, através dessa dinâmica, uma cultura se sobrepõe a outra, nos custa à liberdade e a felicidade. A socialização é feita através de pactos sociais para mantermos nossa integridade moral e física, uma vez que temos que reprimir os instintos primitivos, lidos como selvagens e agressivos, em nome da civilização, enquanto indivíduo não precisaria reprimir instintos, e assim estaríamos mais próximos da felicidade (FREUD, 2011. Pag.; 32).
Para Marcuse (1975) em Eros e Civilização, utilizando essa concepção de Freud (2011), diz que a possibilidade de uma sociedade sem repressão seria impossível. A opressão e repressão são elementos culturais estabelecidos dentro de uma ideologia de dualidade, surge a necessidade de ligar essa construção social entre o bem e o mal, civilizados e bárbaros, Eros e Thanatos.
A repressão é um processo vicioso na mentalidade da sociedade civilizada, que se transmuta para nossa estrutura hierarquizada, reforçada no sistema capitalista, sobre a exploração das classes e a dominação dos explorados, do outro ser humano. Essa estrutura responde ao capitalismo que Marcuse chama de mais repressão. É o sistema dominante que intitula, e que conduz, do principio de prazer. O principio de realidade na atualidade, seria o principio de desempenho.
Marcuse (1975) complementa Freud (2011) sobre a ideia de sublimação, argumenta que praticamente toda energia sexual reprimida é voltada para o trabalho, e as pulsões sexuais no trabalho não são satisfeitas de forma direta, e que o trabalho, por ser alienado, tampouco satisfaz o individuo, tornando-o permanentemente insatisfeito. E o capitalismo usa dessa insatisfação como base para o consumismo. De fato, dentro da nossa atual realidade, nem todos os trabalhos é prazeroso, o prazer sexual é reduzido, e o trabalho se torna símbolo da violência. São estabelecidas no trabalho as relações de poder, há uma “justificativa” que o sistema estabelece para poder explorar em nome do progresso (MARCUSE, 1975, pg.: 51).
O princípio do prazer é negado pelo princípio do desempenho, porque já é estabelecida uma contradição com o principio de realidade e para se submeter a um sistema de produtividade e exploração é necessário se alienar, ter uma ilusão de autonomia e liberdade para se manter na sociedade, por isso a repressão na sociedade capitalista é identificada como mais repressão por Marcuse (1975). Definindo o princípio de desempenho o autor explica que, pertencer a uma sociedade em processo de expansão e desenvolvimento, característica de um sistema capitalista, no qual as relações de classe são denominadas e as relações de poder são estabelecidas significa ter a necessidade de nos manter dentro disso, isto é, que o nosso psiquismo é elaborado e construído para que vivamos e nos adaptamos a isso.
O trabalho é determinado para a maioria da população, o direito de escolha quase não existe, é importante pensarmos no lugar de resistência do individuo frente a violência no processo de trabalho. O controle é estabelecido como norma, sendo assim, tudo o que a sociedade faz, produz, constrói e desempenha é controlado. É como se fosse estabelecida o lugar onde cada um ocupa na sociedade, homens e mulheres, brancos e negros, pobres e ricos, patrão e empregado. O trabalho ocupa a maior parte do tempo na vida das pessoas. Que em sua maioria é marcado por uma severa exploração, subestimação e violência:
O trabalho alienado significa ausência de gratificação, negação do principio de prazer. A libido é desviada para desempenhos socialmente úteis, em que o individuo trabalha para si mesmo, na medida em que trabalha para o sistema, empenhando atividades que, na maioria dos casos, não coincidem com suas próprias faculdades e desejos (MARCUSE, 1975, pg.: 57).
Seguindo esse pensamento, quem sustenta o capitalismo? Que corpos são determinados para serem controlados e crescerem para obediência e servidão? Na construção da sociedade sabemos que a família monogâmica, a mulher e os negros é que correspondem a essas bases.
Para Simone de Beauvoir (1970), em Segundo Sexo, a mulher sempre foi escrava do homem, nunca houve na historia situação de igualdade entre homens e mulheres, mesmo que estejamos fazendo parte de um processo evolutivo ainda assim a mulher se encontra em situação de subordinação em diversos setores na vida. É uma desvantagem histórica, no setor político, social, trabalhista, cultural. O fato de a história ser construída pelos homens nos condicionou a uma situação de dependência ao patriarcado. Mesmo fazendo parte do processo de luta contra o patriarcado, fazemos parte do mundo masculino. Somos consideradas, segundo Beauvoir (1970) como segundo sexo, ou seja, O Outro sexo. Para reforçar a história de subordinação da mulher ao homem, o cristianismo também foi peça fundamental para que isso acontecesse, assim como o homem sente a necessidade de um Deus (masculino), se encontra a necessidade de uma dependência por ele. Coincide com a vontade de dominação, de culpa do segundo sexo. As mulheres (personagens bíblicas) não tiveram a oportunidade de se tornarem independentes desses homens, desde então a fragilidade, e a imbecilidade fizeram parte da história feminina e, principalmente quando contada pela igreja. Esse fato nos reprimiu dos prazeres sexuais, à justificação das dores femininas. Tanto o casamento quanto o trabalho surgem para a mulher como forma de servidão. No trabalho em específico, são vistas como fortes concorrentes e sujeitas a trabalhar por baixos salários.
Sendo assim Beauvoir consegue fazer uma correlação entre as mulheres e os negros, de certo, denunciando o que a sociedade, dirigindo-se a burguesia, tem como costume de, produzir e reproduzir mecanismos de dominação como: coibir a mulher em relação a sua autonomia e o negro à sua liberdade, numa forma de mantê-los em seus devidos lugares. A burguesia conservadora vê na emancipação destes uma ameaça, é necessário manter e reproduzir dominação sobre esses corpos. Esse é o método de conservação da burguesia (BEAUVOIR, 1970, pg. 17).
Freud (2011) esclarece que existe uma ilusão de que o indivíduo seja pacifico e que seriam reativos às agressões impostas, porém não desconsidera o fato de termos a agressividade instintual:
O próximo não constitui apenas um possível colaborador e objeto sexual, mas também, uma tentação para satisfazer a tendência à agressão, para explorar seu trabalho sem recompensá-lo, para ele se utilizar sexualmente contra a sua vontade, para usurpar seu patrimônio, para humilha-lo, para infligir lhe dor, para tortura-lo e mata-lo (FREUD, 2011, pg.: 57).
Segue dizendo que só não agimos com mais agressividade por conta da repressão, que nos freia de agir impulsivamente. A civilização restringe a liberdade do individuo, fazendo-nos renuncias aos impulsos, levando-nos as frustrações que influenciam nossas relações culturais. Camuflamos a força da agressão e da autodestruição. A religião é responsável por alimentar questões morais na construção da sociedade. Temos o superego como cão de guarda, fazendo a mediação entre o mundo interno e o mundo externo. Chega ao objetivo de reduzir a agressão e direciona para o Ego o sentimento de culpa e de autopunição:
“A civilização controla então o perigoso prazer em agredir que tem o individuo, ao enfraquecê-lo, desarma-lo, e faz com que seja vigiado por uma instancia no seu interior, como por uma guarnição numa cidade conquistada.” (FREUD, 2011, pg.: 69).
Para Marcuse (1975), a culpa é algo ambivalente, que ocorre na psique do individuo, mas também pelo processo violento da sociedade capitalista que intensifica a exploração, através da construção cultural, baseada nos conceitos cristãos, de culpa, medo, castigo e exploração do trabalho, consumismo e todo mecanismo que sustenta essa engrenagem. Através da alienação e da ilusão de independência e autonomia, o trabalhador se culpa até pelo direito ao descanso, acabamos por alimentar e intensificar essa estrutura.
Beauvoir reafirma esse contexto de culpabilização da mulher e da forma que todas as agressões históricas e morais contra nós foram justificadas pelos homens, e a necessidade de reivindicar o lugar da mulher que não fosse o outro, e muito menos objeto. A história feminina foi cercada de acusações e subestimação, moeda de troca e não direito a primogenitura (BEAUVOIR, 1970, pg.: 126).
O corpo feminino é cruelmente posto à exploração, o sistema é permissivo a violência em relação a isso. A mulher é monopolizada dentro do casamento e direcionada aos afazeres domésticos, recebem menos por uma questão de gênero e a prostituição é o símbolo da exploração das mulheres pelo mundo:
“... Em toda parte se permite a mulher moderna encarar o corpo como um capital passível de exploração. A prostituição é tolerada, a galanteria encorajada. A mulher casada é autorizada a viver as expensas do marido, demais, adquire uma dignidade social muito superior a da celibatária...” (BEAUVOIR, 1970, pg.: 175).
Djamila Ribeiro (2019), em seu livro Lugar de fala, perpassa todo pensamento de Beauvoir sobre a posição do segundo sexo na sociedade, porém a autora situa a posição da mulher negra, com mais clareza, e como o corpo e a fala negra ocupam o lugar de invisibilidade, tornando concreto à subjetividade do outro, para Beauvoir, o segundo sexo. A mulher negra é o outro do outro:
“Kilomba sofistica a percepção sobre a categoria do outro, quando afirma que mulheres negras, por serem nem brancas e nem homens ocupam um lugar muito difícil na sociedade suprematista branca, uma espécie de carência dupla, a antíteses de branquitude e masculinidade. Por esse ponto de vista, percebe o status das mulheres brancas como oscilantes, pois são mulheres, mas são brancas, do mesmo modo faz análise em relação aos homens negros, pois esses são negros e não homens. Mulheres negras, nessa perspectiva, não são nem brancas e nem homens, exerceriam a função de O outro do Outro.” (KILOMBA, 2012, apud RIBEIRO, 2019, pg.: 38).
Identificar que o instrumento de dominação e opressão é algo subjetivo e social é essencial para que saibamos como isso ocorre na sociedade. Mesmo que todos nós humanos passemos por um processo de repressão dos instintos naturais, precisamos apontar que esse mecanismo é agravado por nossa cultura, pelos códigos que são construídos, e resulta em violência social. É obvio que não se resume somente à raça, gênero e classe, mas, é exatamente nesses pontos dentro do sistema capitalista que se desenvolve a maior desigualdade. Uma sociedade patriarcal, racista e sexista, que estabelece e determina qual o lugar onde cada um deve ocupar que chega aos seus excessos quando ao discutir a orientação sexual, genocídio da população preta, misoginia, por exemplo, e esses fatores ainda são vistos como motivo de aniquilação do outro. É exatamente sobre essas questões que se exterioriza a dominação e o controle, isto é, existem perfis suscetíveis para que isso ocorra.
O fato é que essas relações de poder, são fundamentais dentro desse processo, há uma relação hierárquica estabelecida e que propicia que o capitalismo neoliberal faça sua manutenção diária, preservando uma elite branca e colocando na base a população preta, sustentado essa pirâmide, junto com todas as problemáticas e questões sociais que nos cercam (RIBEIRO, 2019, pg. 64).
SILVA, Karyn Kyssi. Educadora Social e Assistente Social. Pós-graduada em psicologia Social. São Paulo. 23/10/2020.