FAMILIA INTERRACIAL E EDUCAÇÃO ANTIRACISTA
É importante perceber que o processo de racialização no Brasil foi fundamental para o clareamento dos indivíduos. Temos um histórico de famílias com dificuldades de identificar e registrar seus filhos negros. Carneiro (2011) traz em seu texto, Negros de pele clara, o diálogo de um pai negro com um escrivão ao tentar registrar sua filha como negra, sendo sua mãe branca. O primeiro ponto que foi questionado é se a criança parecia de fato com o pai. Estamos falando de um sistema que clareia as nossas raízes de forma perversa. Que colabora para que acreditemos que em nosso país existe uma “raça pura”, e que quanto mais claro eu for, mais privilégios eu terei dentro da sociedade. A questão é que, estamos falando de um país de maioria negra, lido dessa forma internacionalmente. Entendo que a construção dessa consciência racial precisa se dar de forma objetiva e de maneira resistente, pois a uma investida da expropriação de identidade racial e negra das famílias e indivíduos pretos de maneira constante e recorrente. A autora enfatiza o fato de que por mais que há diversidade de cores pretas no Brasil, notória e questionadora, nas nossas relações sociais, quando se trata de marginalização e criminalização, geralmente a branquitude, a polícia e o Estado sabe muito bem quem é preto, sejam jovens de pele clara ou escura:
“A fuga da negritude é a mesma da consciência de sua rejeição social e o desembarque dela sempre foi incentivado e visto com bons olhos pela sociedade. Cada negro claro ou escuro que celebre sua mestiçagem – ou suposta morenidade – contra sua identidade negra tem aceitação garantida. O mesmo ocorre com aquele que afirma que o problema é somente de classe, e não de raça.” (CARNEIRO, P: 73. 2011).
O tabu que permeia famílias inter-raciais é o racismo na família, ou a ausência da construção de identidade. Poderia colocar aqui diversas histórias sobre famílias inter-raciais com uma quantidade imensa de fatos que permeiam essa problemática: Famílias que não se declaram racistas, distribuição de afetos, pais que não assumem filhos negros, que diferenciam filhos pela cor, que escolhem seus parceiros de acordo com a sua ascensão social que é um traço, um sintoma bem característicos por sinal. São vários pontos que precisamos discutir. Mas aqui vou falar da construção da identidade racial, e o quão é importante na subjetividade do individuo. O inicio geralmente gera uma tensão na família. Qual a cor do novo membro? Por incrível que pareça, sempre surge um espanto que, mesmo casais negros, possuem uma expectativa de um novo membro da família não ser tão preto. Quando se é criança, o formato do seu nariz e o tamanho da boca é sinônimo de complexo. A cor clara sempre é almejada de alguma forma (JULIÃO, 2018). A dificuldade de lidar com os cabelos, por exemplo, é um dos pontos que mais chamam a atenção. Meninos, sempre careca e meninas ou alisavam desde novas ou sofriam arduamente para encontrar uma alma querida na família que conseguisse lhe dar com os fios crespos.
Para Lia Vainer Shucman, psicóloga e pesquisadora, escreveu um livro sobre Famílias inter-raciais, tensões entre cor e amor, pontua diversas histórias de racismo dentro das famílias. Toda ou a maioria das famílias tem ou terá uma questão inter-racial. O racismo não é nomeado e a negação da sua cor se neutraliza. Geralmente nas famílias inter-raciais não se discute cor. No entanto dentro de uma família inter-racial os atos de racismo podem aparecer de forma simbólica e concreta, ou seja, uma pessoa de pele mais escura dentro de uma família branca, ou mais clara que ela, está sujeita a sofrer racismo. A autora do livro relata que as pessoas negras dentro de famílias brancas acabam ocupando um lugar de subalternidade, ocupar o lugar doméstico e de servidão, isso nas famílias contemporâneas. A necessidade de trazer à tona a consciência racial faz com que a formação da subjetividade do individuo e do lugar de pertencimento se efetue na sociedade. Criar uma imagem negra positivada para um sistema é um processo delicado, mas não é impossível, algo que deva ser feito através da educação, acolhimento e inclusão na negritude. Ela deixa claro que Identidade racial e identificação racial não são as mesmas coisas, que no Brasil o colorismo, a leitura que se faz pelo tom de pele, ou seja, quanto mais branco, mais privilégios, a sociedade o lerá como branco e ponto final. Já a identificação racial, é ter a consciência de raça, e se identificar com a cultura, e com as referencias negra (SCHUCMAN, 2017).
Seguindo essa linha de pensamento, a autora fala sobre o letramento racial, o conceitua como:
“O letramento racial está relacionado principalmente com a necessidade de desconstruir formas de pensar e agir que foram naturalizadas. Se não admitirmos que nossa sociedade seja organizada a partir de uma perspectiva eurocêntrica e orientada pela lógica do privilégio do branco, trabalharemos com uma falsa e insustentável ideia de igualdade, porque o racismo é estrutural e institucional.” (Schucman apud Almeida, 2017).
Dessa forma, não há mais possibilidade de disputar igualdade em uma sociedade que carrega traços narcísicos europeus, no entanto sua maioria negra ainda sem acesso a educação, cultura, lazer, saúde, emprego, tenham suas vidas neutralizadas pela violência de Estado e invisibilizadas socialmente. O investimento numa educação antirracista de base, com conhecimento teórico da história dos povos africanos que deram origem a diversidades de identidades, da mesma forma que aprendemos a história da América, Europa, Grécia ou Roma, compreendendo que o racismo é uma ideologia e politica. (ALMEIDA, 2017).
Esse ponto vai de encontro com o que Fanon diz sobre desconstruir as narrativas europeias, que colocam o mal representado pelo negro:
“É preciso avançar lentamente, nós sabemos, mas é difícil. O carrasco é o homem negro, satã é negro, fala-se de trevas, quando não é sujo, é negro. – tanto faz se isso refira-se a sujeira física ou moral. Ficaríamos surpresos se nos déssemos ao trabalho de reunir um grande numero de expressões que fazem do negro o pecado. Na Europa, o preto, seja concreta, seja simbolicamente, representa o lado ruim da personalidade. Enquanto não compreendermos esta proposição, estaremos condenados a falar em vão do “problema negro”. O negro, o obscuro, a sombra, as trevas, a noite, os labirintos da terra, as profundezas abissais, enegrecer a reputação de alguém, e do outro lado: o olhar claro da inocência, a pomba branca da paz, a luz feérica, paradisíaca. Uma magnifica criança loura, quanta paz nessa expressão, quanta alegria, principalmente, quanta esperança! Nada de comparável com uma magnífica criança negra, algo absolutamente insólito. Na europa, isto é, em todos os países civilizados e civilizadores, o negro simboliza o pecado. O arquétipo de valores é representado pelo negro”. (FANON, P: 160, 2008)
Precisamos enegrecer a nossa sociedade intelectualmente, descolonizar conceitos, ações e palavras, através de um mergulho na história africana, a história do nosso país. Isso é importante para que questões como essa sejam vistas pela sociedade e possam ser moldadas, que essas tensões raciais possam ser desconstruídas através da reeducação.
A necessidade de romper laços com um sistema racista que alimenta repressões e opressões de maneira velada, fazendo com que o individuo venha perder sua identidade e ter uma falsa ideia do que é. Descolonizar é um traço importante para resgatar nossa identidade, e positivar nossa negritude. Nossos referencias precisam enegrecer para que a identificação com a cultura negra seja dada de maneira harmoniosa. Identificação e identidade são questões diferentes. Ter a pele escura, retinta, clara, traços negroides não me deixam negar a minha negritude. Mas tornar-se negro é um processo de ganho, mas também de sofrimento. Veio-me a pergunta: Será que os negros de pele clara se identificam como Negro ? e sabe o que eu penso ? se ele não tiver a mínima instrução e educação sobre sua cor, sua história, e de sua mãe, ele reproduzirá o que o sistema ensina. Negará sua identidade sempre que for preciso. Porque esse é o papel do sistema, nos clarear o tempo todo, distorcer a nossa realidade e a nossa identidade para não sabermos quem somos.
SILVA, Karyn Kyssi – Educadora Social e Assistente Social. Pós Graduada em Psicologia Social. São Paulo, 20/08/2020;