Paradoxo socrático deveria nortear posturas frente à COVID-19 e não a arrogância e a hipocrisia que têm predominado.

Paradoxo socrático deveria nortear posturas frente à COVID-19 e não a arrogância e a hipocrisia que têm predominado.

A frase só sei que nada sei (originalmente do latim: "ipse se nihil scire id unum sciat", atribuída à Sócrates e muito utilizada para lembrarmo-nos da própria ignorância - de quanto mais aprendemos, mais temos a descobrir -, deveria ser a mantra do atual momento. E não a arrogância e a hipocrisia que tanto temos visto, em variantes de xenofobia, disputas políticas (apenas) e visões extraídas de trechos fragmentados - quando não tudo junto e misturado, num verdadeiro show de horror.

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Não sabemos muitas coisas em meio à epidemia. Projeções bastante negativas e que moldaram preparações de alguns estados, municípios ou mesmo hospitais falharam - algumas retumbantemente. Teses de semanas atrás usando Singapura, Japão e Suécia como exemplos de bons resultados sem medidas restritivas muito severas foram contrariadas da pior forma possível: não por contrapontos teóricos robustos, foi por empilhamento de corpos mesmo. A guerra ideológica dos WhatsApp's trouxe declaração verdadeira de Ministro da Defesa Israelense defendendo isolar apenas os idosos, mas em momento onde já estavam em franco lockdown. Ontem recebi vídeo falando das vantagens do lockdown em Israel - como justificativa para o Brasil não dar nenhum passo atrás -, exatamente um dia depois de aprovarem a flexibilização de parte das medidas drásticas previamente estabelecidas. Não parece haver compromisso com a data das manifestações, o importante é fortalecer teses próprias e enfraquecer as alheias. Os outros e suas ideias parecem mais adversários que o próprio coronavírus então. Está nos faltando comprometimento mínimo com a verdade, e ocorre a partir de todos os corners ideológicos....

Apontamos os dedos, soltamos a voz e disparamos raios e trovões contra quem projetou o pico da epidemia para a segunda quinzena de abril e depois muda para maio, quem sabe junho. Como se eliminássemos incertezas e limitações por vontade, por força do pensamento!

Enquanto Ministro da Saúde, Mandetta virou, seletivamente, símbolo de indiferença quanto aos danos que o comprometimento da economia poderia trazer. Esteve no centro de debate radical sobre isolamento vertical versus horizontal. No entanto, as orientações oficiais do seu Ministério sempre foram mais restritivas para idosos e grupos de risco, apenas não abrindo mão de regras básicas de convivência geral em tempos de surto infeccioso de fácil transmissão: educação, bons modos e etiqueta universais. Na portaria 356/3020, fez o que precisava ser feito: transferiu parte da responsabilidade por medidas mais restritivas a Estados e Municípios.

Já Bolsonaro foi satanizado por ousar preocupar-se com a economia. É verdade que agiu irresponsavelmente em alguns momentos (aqui, aqui e aqui). Mas as preocupações em si são justas, apenas mais complexas do que qualquer visão que aborda os temas saúde e economia dicotomicamente pode oferecer. Se as consequências no setor saúde forem muito negativas, levarão de reboque a economia tal como as medidas epidemiológicas muito restritivas podem fazer. Há inúmeras interdependências e não-linearidades.

Bares Clandestinos

Decretos do Governo Federal sequer deveriam ser tão valorizados, e então a disputa que se estabeleceu entre o Presidente e o Ministro da Saúde, e então o tempo e energia consumidos em debates de WhatsApps e redes sociais. Seja porque resta óbvia a necessidade de descentralização para tomada de decisões, levando em conta diferenças regionais. Seja porque, mesmo estivessem Presidência e MS em plena sintonia, o lockdown por decreto, em um país com dimensões continentais e variadas realidades climáticas, estruturais e sociais, iria começar a enfraquecer em localidades onde os fatos e as consequências percebidos na ponta não convencessem as pessoas ordinárias. Basta lembrar da Lei Seca, nos EUA. Em vez de resolver o problema, como desejavam seus defensores, levou ao aumento nos índices de embriaguez e criminalidade. Válida por 13 anos, a emenda se tornou um dos maiores fracassos legislativos de todos os tempos. Desmoralizou as autoridades e foi um estímulo à transgressão. Nas fotos, um bar clandestino e bengala com tubo de vidro que era preenchido por uísque.

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Por outro lado, não se descarta que lockdowns tenham sido necessários, ainda sejam ou venham a ser, pois uma coisa não se deveria discutir: transmissão é quanto mais evitada quanto mais forte forem as medidas de distanciamento social, eventualmente isolamento ou quarentena.

Mas as discussões com segundas e terceiras intenções, induzindo à cenário falsamente moralizado, artificialmente polarizado e, conseqüentemente, mais confuso do que já é, comprometem até mesmo a assimilação pela população das diferenças entre distanciamento social e quarentena. No meu prédio e em tantos rincões desse Brasil, vamos terminar a epidemia sem bem reconhecer sequer como é a transmissão. Hoje, circular condominial chamou atenção para que não se deixe sapatos em frente às portas, pelo risco de infectar os funcionários da limpeza. Estarão eles sendo orientados que toda superfície de contato deve ser encarada como suspeita e que devem lavar as mãos entre tocar em qualquer coisa ou lugar e coçar o nariz?

Já debate radical entre isolamentos vertical e horizontal universais é de uma improdutividade tão grande, por não abranger complexidade e possibilidades diversas entre uma coisa e outra, bem como padrões mínimos de comportamentos que não afetam economia, que sequer mereceria existir, no âmbito de um país do tamanho do nosso. Em meio a tantas incertezas, algumas poucas coisas sabemos, como por exemplo:

- Descentralizar é o caminho! Então até presidente e ministro da saúde podem e devem ter menos opiniões no assunto envolvendo gradientes restritivos, desde que saibam trabalhar em equipe com governadores e prefeitos;

- Quem pode ficar em casa, deve ficar em casa. Quem não pode (não vale não quer), vai à luta, mesmo que aos moldes dos moonshiners da época da Lei Seca, que vendiam ilicitamente as bebidas alcoólicas;

- Mas tu que és meu contato historicamente "do lar", e não dependente, ou quem te ajuda, de empreender ou manter a empresa a mil para garantir o dinheiro para sobrevivência no final do mês, ajude do único jeito que pode: com menos boas intenções filosóficas de botequim, e mais ações tuas mesmo. Apaga aquela postagem ridícula sobre passeata, e foca no que te compete e não interfere em nada além de saúde: etiqueta básica e bons costumes. Não gosto do slogan "fiquem em casa por nós". Se existem heróis nos hospitais são técnicos de enfermagem e auxiliares de limpeza. Mas é muita falta de respeito qualquer olhar que não compreenda a complexidade do fenômeno que está ocorrendo - só mudam as perspectivas míopes e, então, as vítimas além das que constam nas sempre pouco úteis estatísticas oficiais, por recorrente falta do denominador.

- Quem quiser abrir a economia com um pingo de responsabilidade deverá testar enlouquecidamente (e não através de testes sorológicos, por ora), isolar quem for positivo, usar de recursos - incluindo tecnologia de rastreamento - para identificar contatos, e investir em pesquisas - boas pesquisas, não tipo aquela horrorosa da Prevent Senior. Deve parar com o debate sobre datas e prazos estanques, focar em circunstâncias. Deve tratar o diferente, diferente. Deve fazer como fazemos em melhoria da qualidade: criar um processo contínuo, no qual a avaliação leva ao diagnóstico das deficiências, a redefinição de objetivos e metas, novas ações e o retorno à avaliação - permanentemente, até o final da epidemia.

E hipocrisia não é o Mandetta confraternizar com equipe que esteve com ele todo o tempo até ali (talvez tenha ocorrido no momento oportunista em que decidiu pela agudização do conflito). Saiba que eu próprio muito eventualmente também dei uma escapadinha daquela natureza em menor proporção. Mas se tu não entendestes a importância de, na maior parte do tempo, dentro do possível, fazer a coisa certa, deves, infelizmente, voltar para o início do texto. Em meio a tantas dúvidas e imprevisibilidades, restam alguns conceitos moldados cientificamente que não estão em discussão.

Jan Johann Reinel de Castro

Cardiologista especializado em consultas e métodos diagnósticos em cardiologia na Reinel Cardiologia Clínica

4 a

Muito bem colocado Guilherme, parabéns

Roger Pirath Rodrigues

Medico Pneumologista na Clínica Tórax e Hospital Universitário UFSC.

4 a

Excelente

Maria Magalhães

MD, Neonatal intensivist, FISQua, Improvement Advisor IHI.

4 a

Gostei! Israel foi super radical desde o começo. Fechou fronteira no primeiro caso. Atendem os pacientes com a maior segurança. São super preparados para Planos de Contingência e Crise. Se tem um povo que entende de gestão de risco ... Muito boa a reflexão...

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