Pontos e nós, perdidos
Há um tempo não muito distante, a gente dessa geração dos anos 90 e 2000 ouvia todo dia dos pais: “Cuidado com essas coisas que você vê na internet! Não acredite em tudo, cuidado!”, diziam, preocupados. Agora a vontade é de fazer o jogo virar: “Pai, isso é mentira”, “mãe, não compartilhe, é fake news”. Tem um tio no grupo da família que volta e meia encaminha um vídeo conspiracionista que diz que a China dissemina o coronavírus de propósito e que está cientificamente comprovado que se expor e se infectar de uma vez é a melhor forma de se proteger e de evitar a proliferação. E usa isso tudo para justificar seus atos. “Na minha vida ninguém mexe, eu não ligo para isso de máscara, eu que não vou ficar em casa”, eu, eu eu.
Só que, em meio à desinformação e à ignorância, a pandemia também escancarou noções embaralhadas sobre o individual e o coletivo. O clima já vinha quente. Agora, em junho, o Brasil completa sete anos de instabilidade política, polarizado e com debates inflamados sobre temas como direitos da coletividade, liberdades individuais, abdicação de privilégios e modernização da gestão do que é público. Quanto a isso, na pandemia o comportamento de gestores é um sinal dos tempos. A classe política tem provocado, endossado ou pelo menos refletido concepções controversas do “nós” e do “eu”, mesmo quando se reveste de sensatez. Nos vemos ariscos, perdidos. No ar, fica o cheiro de alerta parental, “cuidado com o que vê, cuidado com o que ouve”. Não só dentro, mas também fora das redes: na política não se dá ponto sem nó, não há espaço vago, é o que aprendemos.
O escrachado tem seu valor quando nos serve de exemplo — o choque que desperta a consciência. E nisto a forma como se porta o presidente da República carrega certo didatismo: quando Jair Bolsonaro contraria orientações sanitárias e cumprimenta de perto apoiadores aglomerados, ele no fim das contas legitima o tio que não quer saber de ficar em casa em quarentena. O presidente fez isso mais de uma vez na pandemia; na primeira, em 15 de março, tinha sido orientado a ficar isolado porque ainda não sabia se estava ou não com a doença. Depois informou que não estava, mas em prol de sua popularidade decadente, expôs os fãs e se expôs ao risco. Neste mesmo dia, aliás, insuflou admiradores que foram às ruas se manifestar a favor dele próprio, um charme à parte que não poderia ficar fora desses comentários que rondam o espectro do ego.
Quando o absurdo que salta aos olhos se normaliza, o básico por vezes pode parecer extraordinário, e opositores de Bolsonaro demonstram que sabem se aproveitar disso. Cumprindo o que preconiza a ciência — nada mais que o correto e o esperado -, governadores eleitos com empurrãozinho da onda bolsonarista como João Doria (São Paulo), Wilson Witzel (Rio de Janeiro) e Ronaldo Caiado (Goiás) têm também se esforçado para mostrar que são diferentes do presidente. Uma forma de marcar território. O goiano, médico, era aliado de primeira hora de Bolsonaro e rompeu com ele logo no início da crise do coronavírus; o ex-juiz do Rio usa seu próprio exemplo — contraiu a doença — para defender que a população fique em casa, proposta que desagrada o presidente; Doria mostrou seus exames negativos para a COVID-19 ao vivo na TV enquanto Bolsonaro era cobrado e precisou até de ação na Justiça para mostrar que de fato não estava infectado.
Os embates ora simbólicos ora diretos entre figuras do Poder nos remetem ao histórico político do país. Tragédia ou farsa? História. Pensamos em Jânio, Getúlio, Collor, Maluf, Lula e lembramos que a regra no país é o personalismo. Debate-se liberalismo, social-democracia, trabalhismo, comunismo, mas o que se entende mesmo e o que se defende no Brasil são os impactos positivos ou negativos do lulismo, do getulismo, do bolsonarismo — conceitos ligados a indivíduos, a nomes que souberam e sabem bem operar na lógica do “eu” que impacta a política e que fica explícita na pandemia.
Num momento delicado da História, enquanto a população tenta se apegar à esperança de todo e qualquer jeito em meio à notícia de centenas e milhares de morte por dia, mais uma vez se assiste de forma atônita à complexidade do que se faz, de como se influencia e de como se aproveita do que é do individual ou do coletivo. Há esperança, seja na busca por soluções, na compreensão da ciência, no combate à desinformação, mas há também muitos pés atrás, dúvidas e desconfianças. “Cuidado com o que vê, cuidado com o que ouve”. Há sobretudo pressa por clareza em pontos essenciais nesse contexto de pandemia, como no mais essencial deles, que não deveria rivalizar com egos: a saúde da população. Uma ansiedade que atinge a todos. Você, o tio que se preocupa só com ele, quem governa, eu e nós, buscando rumo e esperança mesmo que um pouco perdidos.