Pare tudo que está fazendo: você precisa conhecer o João agora
É de manhã, e a luz do dia quase inexistente, mas alguns pássaros, cada um à sua cantoria, dão conta de que os raios de sol estão por vir. Os olhos de João, 27 anos, ainda estão praticamente entreabertos, mas seu braço direito já se estica para desconectar o cabo USB que “ressuscitava” o celular durante toda a madrugada.
Centenas de mensagens no WhatsApp pipocaram enquanto a mente ativara, por poucas horas, o modo "tentativa de desligar". A quantia? Bem longe daquela “mágica” de oito, geralmente recomendada por especialistas para um sono adequado.
Passos rápidos e um bocado de coisas a cumprir logo cedo. A água morna para fazer o café ferve na cozinha enquanto, no banheiro, a água gelada, jogada no rosto e acompanhada de tapas leves, serve de despertador natural àquele que, mesmo acordado há menos de cinco minutos, aparenta projetar, exponencialmente, o dia cheio que terá pela frente.
Não fosse coberto por cabelo, couro, pele etc, o cérebro de João praticamente seria capaz de exibir, de modo transparente, as milhões de ligações elétricas que se espalham num raio incontável, isso graças à inúmera quantidade de pensamentos ativos no momento em questão.
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Os pensamentos, porém, não se condicionam ao pão com manteiga que será devorado em breve, ou à roupa que será vestida em poucos minutos. O turbilhão de projeções tem a ver com as horas a seguir, os dias, quiçá meses ou anos, infinitamente distantes daquela manhã.
João, na verdade, é um personagem fictício, mas nem tanto assim. Poderia ser Guilherme, Rafael, Pedro. Poderia ser Maria, Isabela, Rebeca. Na verdade, o nome é o menos importante agora. João é apenas um exemplo fictício-real com o qual acredito que a maioria de nós podemos nos identificar.
O que mudou em dois anos?
Quando escrevi esse texto pela primeira vez, há quase dois anos, lá em 16 de novembro de 2017, estava sedento para descobrir dados de algumas “curiosidades” que bagunçavam minha cabeça repentinamente. Recorri ao Google. Ao digitar “Por que somos ansiosos?”, foram gerados surpreendentes 906 mil resultados; “Por que nos cobramos tanto?”, 523 mil; e “Por que nos sentimos inúteis?”, 365 mil.
Foto: Pixabay
Para o meu espanto, fui atualizar esses números hoje, 13 de novembro de 2019, e mais um choque: na primeira das buscas, respectivamente, o número de resultados cresceu 24 vezes (chegou a 24.300.000); a segunda atingiu 6.290.000, e a terceira alcançou 5.030.000. Um baita sinal, em termos de métrica, de que a ansiedade e a autocobrança podem ser, de fato, alguns dos principais males do século.
Em 2017, a Organização Mundial da Saúde (OMS) já cravava que o Brasil era o dono da maior taxa de ansiedade do mundo. De lá para cá, isso se manteve. Reportagem da Exame, de agosto de 2019, apontava que 18,6 milhões de brasileiros convivem com o transtorno e classificava que o País convive com uma “epidemia de ansiedade”.
Cenário preocupante
Temos um grande problema à nossa frente, até maior do que os milhões de resultados possíveis de serem acessados nas três perguntas feitas ao “oráculo”: admitir que seríamos capazes de um dia digitá-las, ipsis litteris, no Google, ou então ao menos cogitá-las antes de dormir, que seja.
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Agora, na verdade, posso afirmar com tranquilidade que não foi apenas uma mera “curiosidade” minha procurar essas estatísticas. Eram situações que vinham martelando minha mente àquela época do primeiro texto, dia sim, dia não. E, inegavelmente, ainda me deparo com alguns dias assim atualmente. Quem nunca, não é mesmo?
Em 2017, um dos grandes motivos da minha ansiedade eram as dificuldades com planejamento e de enxergar um horizonte depois de retornado de uma experiência de intercâmbio tão intensa.
Cheguei a escrever, naquele momento, que o principal dilema pintava quando, de uma hora para outra, eu, quem tanto havia me planejado durante a vida, não tinha noção alguma sobre o que viria em seguida.
Era como se tivesse que alinhar meus caminhos em meio à neblina, com a visão completamente turva. Mas eu também fiz um contraponto, citando inclusive uma referência bíblica que amenizava um pouco daquele desespero todo.
“Ouçam agora, vocês que dizem: ‘Hoje ou amanhã iremos para esta ou aquela cidade, passaremos um ano ali, faremos negócios e ganharemos dinheiro’. Vocês nem sabem o que lhes acontecerá amanhã! O que é a sua vida? Vocês são como a neblina que aparece por um pouco de tempo e depois se dissipa.” (Capítulo 4 do livro de Tiago, versículos 13 e 14).
É por isso que considero importante relembrar textos antigos que escrevemos. É fundamental, vez ou outra, fazermos um recorte daquilo que estávamos vivendo em determinado período e analisar quanta água passou debaixo da ponte desde então.
À época, eu dizia que gostaria de ser menos João. E acrescentava que gostaria de procurar, com a mesma intensidade, resultados para outras perguntas no Google. Por fim, citava Cazuza, que em Alta Ansiedade cantou “(…) Não sei esperar, não sei esperar. Minha vida é um engarrafamento”.
Hoje, minha vida não está tão “engarrafada” como em novembro de 2017. Me sinto mais confiante e seguro. Às vezes, a ansiedade assombra, dá as caras, passa, vem, volta e vai embora. Às vezes, me vejo Esdras, preparado. Às vezes, me vejo João, querendo tudo para ontem. E assim seguimos, sabendo que, na vida, nada mais precioso que encarar um dia após o outro.
Texto publicado originalmente no Medium, atualizado e adaptado para o LinkedIn
Esdras Felipe Pereira
Saí da pequena Guareí aos seis anos para o que, ao meu olhar de "caipira" (no melhor dos sentidos), era uma gigante Sorocaba à época. Hoje, estou com 25 e há três me formei em jornalismo. Sempre alimentei amor pela escrita, leitura e novos conhecimentos -- a profissão, portanto, tornou-se um prato cheio para unir as três coisas.
Além das passagens profissionais, morei oito meses em Dublin, na Irlanda, lugar que me proporcionou vivência em um novo idioma e, consequentemente, evolução no inglês. Não só isso: conhecer novas culturas me transformou em relação à maneira de observar o mundo e as pessoas.
Se pudesse, carregaria no bolso todos os dias um dos versos de 'Como um Sonho', do Emicida. Como não é possível sempre, carrego na mente: "O que te impede de levantar todos os dias e correr pelo que você acredita? Hein?! Eu acredito que o poder de transformação, realmente, tá na mão da gente".
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5 aQue bom que a Adelane comentou por aqui e seu texto apareceu no meu feed, Esdras Felipe! Que artigo ótimo! Mais dia, menos dia, seremos João, nem que por alguns minutos. Mas acredito que o fato de se perceber nessa pele é que abre caminho pra diminuir a ansiedade a níveis controláveis. Tanta gente se olha no espelho de manhã e não percebe que está João e acha que todas essas sensações são ônus normais da vida corrida... tomara que muita gente leia seu texto, se reconheça e possa começar mudar.
Revisão Textual | Consultoria Linguística | Docência Superior
5 aQue texto! A ansiedade exagerada e a autocobrança desequilibram muito a balança do bem-estar. Mesmo sabendo que precisamos encarar um dia após o outro, é muito fácil esquecermos disso e nos afundarmos nas preocupações exageradas e que, de certa forma, deixam-nos cegos. Falo por experiência própria, já fui João em algumas situações, chegando a confundir a ansiedade com problemas cardíacos, e estou voltando a sê-lo por estar na fase final do mestrado e ter, obviamente, de decidir minha vida. Que entendamos profundamente que cada dia tem sua própria preocupação! Parece fácil, mas não é! Ótimo artigo, Esdras Felipe! Parei logo para ler o texto, continue trazendo para nós as suas reflexões!