Pela Revisão das Normas Relacionadas ao Período de Carência e às Condições Médicas Que Independem de Carência para Fins de Concessão de Auxílio-doença
Situação-problema:
Maria da Silva (nome fictício), 22 anos, está no seu primeiro emprego quando inicia um quadro de Transtorno de Ansiedade Generalizada. Segundo a avaliação do seu médico psiquiatra e do médico da empresa onde trabalha, Maria não possui condições de laborar até que o quadro seja estabilizado. No momento, não há nenhuma atividade laboral na empresa, em que Maria possa ser alocada, sem que haja prejuízo do seu tratamento. Por isso, Maria é encaminhada à Perícia Médica do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). O Instituto nega concessão de benefício a Maria, devido ao fato de ela não ter cumprido a carência de 12 (doze) meses de contribuições mensais, bem como devido ao seu problema de saúde não ser contemplado na lista de exceções para cumprimento de carência. O que fazer com essa trabalhadora? Mantê-la trabalhando, com a possibilidade de retardar a resposta ao tratamento? Ou mantê-la afastada, mas sem renda?
O auxílio-doença é o benefício concedido, pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), a todo segurado que esteja incapacitado para suas funções laborais por: 1) tempo maior do que quinze dias consecutivos; 2) tempo maior do que quinze dias, não consecutivos, dentro do período de sessenta dias, desde que os dias não trabalhados tenham se dado pelo mesmo motivo.
O auxílio-doença está amparado pela Constituição Federal, art. 201, I, pela Lei 8.213/1991, arts. 59 a 63, pelo Decreto 3.048/1999, arts. 71 a 80, e pela Instrução Normativa INSS/Pres 77/2015, arts. 300 a 317. A Emenda Constitucional no 103, de 12 de novembro de 2019, traz um novo conceito, o de incapacidade temporária para o trabalho1.
No contexto da seguridade social, carência corresponde ao número de contribuições mensais que o segurado deve possuir para fazer jus a algum benefício. Conforme disposto na Lei 8.213/1991, Art. 25, I, no Decreto 3.048/1999, Art. 29, I, e na Instrução Normativa INSS/Pres 77/2015, Art. 147, I, para que o segurado tenha direito ao auxílio-doença previdenciário (espécie 31), deverá cumprir carência de 12 (doze) contribuições mensais. Os referidos diplomas legais também preveem, nos arts. 26, 30 e 147, respectivamente, as exceções para cumprimento de carência. Reza o Decreto 3.048/99:
Art. 30. Independe de carência a concessão das seguintes prestações:
III - auxílio-doença e aposentadoria por invalidez nos casos de acidente de qualquer natureza ou causa, bem como nos casos de segurado que, após filiar-se ao Regime Geral de Previdência Social, for acometido de alguma das doenças ou afecções especificadas em lista elaborada pelos Ministérios da Saúde e da Previdência e Assistência Social a cada três anos, de acordo com os critérios de estigma, deformação, mutilação, deficiência ou outro fator que lhe confira especificidade e gravidade que mereçam tratamento particularizado (vide Portaria Interministerial MPAS/ MS Nº 2.998, de 23/08/2001)
A Portaria Interministerial 2.998/2001 define as condições médicas que independem de carência:
Art. 1º As doenças ou afecções abaixo indicadas excluem a exigência de carência para a concessão de auxílio-doença ou de aposentadoria por invalidez aos segurados do RGPS;
Art. 2º O disposto no artigo 1º só é aplicável ao segurado que for acometido da doença ou afecção após a sua filiação ao RGPS.
I – tuberculose ativa;
II – hanseníase;
III – alienação mental;
IV – neoplasia maligna;
V – cegueira;
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VI – paralisia irreversível e incapacitante;
VII – cardiopatia grave;
VIII – doença de Parkinson;
IX – espondiloartrose anquilosante;
X – nefropatia grave;
XI – estado avançado da doença de Paget (osteíte deformante);
XII – síndrome da deficiência imunológica adquirida (AIDS);
XIII – contaminação por radiação, com base em conclusão da medicina especializada; e
XIV – hepatopatia grave.
Interessante notar que o Decreto 3.048/99 dispõe “for acometido de alguma das doenças ou afecções especificadas em lista elaborada pelos Ministérios da Saúde e da Previdência e Assistência Social a cada três anos” (grifo do autor), mas a Instrução Normativa 77/2015, em seu anexo XLV, traz a mesma lista de condições médicas que excluem a necessidade de carência. A essa altura, cabem os questionamentos: houve revisão da lista entre 1999 e 2015? Se sim, que argumentos foram apresentados em favor da manutenção das mesmas condições?
Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que o Brasil é o país da América Latina com a maior prevalência de transtornos depressivos, em torno de 5,8% de sua população (cerca de 11 milhões de pessoas), superando a média de prevalência mundial de transtornos depressivos em 2015 (4,4%). Dados da Secretaria de Previdência do Ministério da Fazenda referentes aos benefícios previdenciários concedidos a trabalhadores segurados pelo Regime Geral de Previdência Social do INSS mostram que os transtornos mentais e comportamentais ocuparam a terceira posição como causa de afastamento do trabalho, no Brasil, entre 2012 e 2016, correspondendo a cerca de 9% do total de auxílios-doença e aposentadorias por invalidez no péríodo2.
Situações como a descrita na situação-problema apresentada acima podem se tornar cada vez mais comuns no contexto da medicina do trabalho, no Brasil, especialmente no que tange os transtornos mentais, que acometem, cada vez mais, jovens, adolescentes e crianças. Cabe ressaltar que o foco na abordagem não meramente curativa, mas, principalmente, preventiva do problema, bem como as alternativas que o empregador pode encontrar no manejo de casos semelhantes, não excluem o papel da seguridade social de proteção do trabalhador doente. Há de se pensar, também, no potencial agravo que um eventual limbo previdenciário-trabalhista traria à saúde mental do trabalhador desassistido.
Não obstante o exemplo utilizado estar incluído no espectro dos transtornos mentais, a discussão poderia ser estendida a outras doenças e condições médicas que podem acometer o trabalhador que ainda não tenha cumprido carência previdenciária (por exemplo, os quadros cirúrgicos agudos, muitos dos quais exigem tempo de convalescença, após a cirurgia, superior a quinze dias). Nem sempre é possível remanejar o trabalhador doente, ou em recuperação, para outra função ou posto de trabalho de forma segura para ambas as partes: o trabalhador e o empregador. Em “forma segura”, estão incluídos não somente os riscos à saúde do trabalhador, mas, também, todas as implicações jurídicas.
Um sistema integrado INSS-Empresa, em que o perito médico e o médico do trabalho pudessem trocar informações úteis para a tomada de decisão, parece muito distante da realidade brasileira. Um caminho mais curto seria a mudança da norma vigente, com maior flexibilidade para a concessão do benefício em questão.
REFERÊNCIAS
1 ALVES, Hélio Gustavo. Guia prático dos benefícios previdenciários: de acordo com a reforma previdenciária – EC 103/2019. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
2 ZÉTOLA, Paulo Roberto (org.). Tratado de gestão em saúde do trabalhador. Belo Horizonte: Ergo, 2020.