Pode isso, Arnaldo? Conheça 13 zonas cinzentas da prática do sistema de franchising e saiba como lidar com elas

Pode isso, Arnaldo? Conheça 13 zonas cinzentas da prática do sistema de franchising e saiba como lidar com elas

A aplicação na prática do modelo de Franchising tem o condão de permitir o crescimento e desenvolvimento de empresas, e se fundamenta a partir de regras claras e transparentes, testadas e de sucesso comprovado, por meio de ferramentas de planejamento e controle previstas em contrato e na forma de manuais de normas e procedimentos, programas de treinamento, processos mapeados e indicadores de desempenho. Trata-se de uma relação de marketing contratual que une franqueados a seu franqueador, tendo a marca registrada e o branding como principais pontos de aderência na rede. Quando todos estes elementos são colocados juntos, instaura-se um processo sinérgico e o negócio consegue se expandir exponencialmente, de modo estruturado e a custos relativamente baixos.

 

Este sistema é multivariável e multidisciplinar, portanto é de alta complexidade. Evoluiu muito desde seu conceito original, cujos primórdios remontam à Era Medieval na França e na Europa, e deslanchou sobretudo a partir de sua aplicação muito bem sucedida nos Estados Unidos da América, da segunda metade do Século XX até os dias presentes. Naturalmente, foram testadas inúmeras variações ao longo de décadas, com algumas evoluções notáveis e pertinentes, mas também  muitas distorções que simplesmente não prosperaram, seja por questões legais, econômicas, sociológicas ou comportamentais, considerando diferenças culturais e de usos e costumes, que são mutáveis e evoluem ao longo do tempo.

 

Em primeiro lugar, é importante salientar que havia somente 43 países no mundo com legislação de franchising na data de redação deste texto. Portanto, podemos afirmar que o sistema de franchising no Brasil aflorou, em primeiro lugar, em função do ambiente jurídico favorável, seja em função da Lei 8955/1994 ou da Lei 13966/2019 que a sucedeu.

Zona cinzenta 1: Ou seja, nos demais países, quando se anuncia que uma franquia foi comercializada, o contrato assinado é na verdade adaptado e ajustado a outros modelos de negócio similares, como concessão comercial, licenciamento ou contratos de distribuição e abastecimento, no caso de envolver produtos.

 

E o país conta com a força de uma entidade forte que representa este segmento de mercado, a Associação Brasileira de Franchising (ABF), que constitui um braço fundamental do setor e organiza eventos como Feiras e Convenções, fornece capacitação a pessoas interessadas em atuar no sistema, e inclusive defende o segmento junto às autoridades em Brasília. Zona cinzenta 2: a ABF possui uma comissão de ética, no intuito de coibir práticas indevidas. Por outro lado, a ABF não possui poder para impedir práticas desonestas, ilícitas ou inescrupulosas, cabendo este papel à polícia e à Justiça comum. Não é possível a um leigo separar o joio do trigo sem orientação especializada, portanto em feiras e eventos coexistem negócios mal estruturados com as melhores redes do setor.

 

Nossa legislação e jurisprudência têm sustentado alguns dos pilares básicos do sistema, que consiste em permitir um planejamento tributário e praticar o conceito de “grupo econômico” sem riscos trabalhistas e com economia legal de impostos. Juntos, os integrantes da rede conseguem firmar acordos de marketing reverso e obter condições competitivas nas compras e na publicidade junto a seus fornecedores, sendo esta economia de escala nas compras uma condição essencial para franqueadores no segmento de distribuição de mercadorias. Zona cinzenta 3: Isto se reveste de suma importância, considerando o exemplo dos EUA, país onde o sistema é o mais forte e desenvolvido do mundo, porém onde a tese do "Joint Employer", ou seja, a ideia de que o funcionário do franqueado é também funcionário do franqueador, tendo tal distorção ganhado espaço em alguns Estados norte-americanos. Este tem sido considerado o maior risco para o sistema de franchising nos EUA, pois o mero fato de um franqueador estar sujeito a assumir o passivo trabalhista de suas unidades franqueadas inviabiliza e desestimula muitas redes a seguir enquadrada neste sistema por lá.

 

Os componentes básicos do sistema de franchising são portanto muito bem conhecidos e documentados. Na prática porém, muita gente acredita que tudo poderia ser diferente e cria suas próprias teorias e regras da própria cabeça! Pode isso, Arnaldo? Como diria Aristóteles, o equilíbrio está no meio: a falta ou o excesso na intensidade estão na origem de muitas dificuldades pelas quais passam as redes.

 

Descrevemos a seguir mais 10 dos pilares do sistema de franchising e o que acontece quando uma organização se afasta das regras básicas que sustentam este modelo:

1.      Unidades piloto (próprias ou franqueadas) validadas: o ideal na visão francesa seria operar 3 unidades por pelo menos 2 anos e passar por duas sazonalidades. Zona cinzenta 4: Criar um negócio novo do zero e sair franqueando significa ter de trocar pneu a 120 km por hora! E se forem vendidas dezenas ou centenas de unidades muito rapidamente, o problema é exponenciado na mesma proporção! Por outro lado, quando se têm 2 unidades próprias e se dispõe de capital para abrir a terceira, o ideal normalmente seria logo partir para formatar o sistema de franchising, visto que, ao concentrar seu tempo nas questões operacionais das unidades próprias, o dirigente pode perder o foco na expansão e na visão estratégica. 

2.      Taxas iniciais e contínuas: São geralmente a principal fonte de receita de uma franqueadora, precisam estar bem calculadas com base no valor intangível da marca, na relação investimento-retorno e no custo de supervisão e controle. Por outro lado, os fornecedores poderão auferir de algum lucro e de uma certa estabilidade no seu Planejamento e Controle de Produção (PCP), e venderão sem precisar pagar comissão a vendedores, portanto o franqueador poderá firmar Acordos de Marketing Reverso e receber justificadamente algum tipo de benefício na forma de créditos, descontos ou rebate, desde que condições competitivas sejam oferecidas aos franqueados. Zona cinzenta 5: o valor fixo ou percentual de royalties é claramente anunciado, porém ninguém audita se o franqueador está de fato investindo um percentual de seus proventos em capacitação, supervisão de campo e suporte de gestão. Assumir custos fixos que requerem a venda de franquias e contar com o recebimento de taxas iniciais para cobrir estes custos é uma maneira rápida de quebrar uma franqueadora, afinal os custos fixos precisam ser cobertos por royalties ou rendas adicionais de outras fontes. E há redes que franqueiam modelos de negócios e não possuem produtos, portanto não são fabricantes, importadores nem distribuidores. O risco neste caso é inviabilizar a operação franqueada, aumentando demais seu CMV (Custo da Mercadoria Vendida), seu ponto de equilíbrio e seu payback estimado.

3.      Transparência (disclosure): o franqueador precisa divulgar que opera pelo sistema de franchising e repassar uma série de informações a potenciais interessados em se tornar parceiro de seus negócios. Zona cinzenta 6: O franqueador também será abordado por muitos curiosos e concorrentes, portanto precisa criar alguns anteparos, como contar com outra pessoa para fazer o primeiro atendimento a potenciais franqueados. A informação de investimento inicial necessário deveria ser melhor detalhada, informando a faixa de valor e jamais um único valor fixo, pois a imprecisão nestes valores pode fomentar a criação de negócios natimortos, com capital de giro já despendido na fase pré-operacional.

4.      Sucesso e lucros mútuos (partners for profit): a relação ganha-ganha é requisito ao processo. Zona cinzenta 7: Não se trata de um cassino nem de venda piramidal onde um perde para o outro ganhar: precisa ser viável e atraente para todos os players envolvidos, o que significa que precisa existir margem de lucro excedentária para ser dividida. A fase piloto precisa demonstrar a existência desta margem excedentária. E margens muito estreitas podem rapidamente se tornar negativas em mercados voláteis como no Brasil.

5.      Suporte na formatação: Há muitos poucos profissionais especializados de fato na formatação de franquias, não há muita escala nesta atividade e precisa ter um perfil pessoal e profissional que junte conhecimento aprofundado e experiência multidisciplinar, com visão transversal. Zona cinzenta 8: profissionais não qualificados na habilidade de formatação anunciam seus serviços sem que um "track of records" ou algum selo de excelência reconhecido assegure a seus clientes os entregáveis. Estelionatários e quadrilhas anunciam a venda de franquias não formatadas, com desenvolvimento depois de comercializadas as primeiras unidades, sem curva de experiência e portanto com risco estrutural elevado e repassado aos primeiros franqueados.

6.      Processo seletivo: Franquia envolve um processo de “venda não-venda”. Sim o franqueador quer comercializar franquias, porém não para qualquer um! Há um perfil mínimo e ideal no tocante a aspectos pessoais, profissionais, financeiros e comportamentais a ser identificado e considerado ao longo deste processo. Zona cinzenta 9: Caso não seja seletivo, o insucesso dos primeiros franqueados poderá condenar a rede a não crescer, afinal eles são os principais aliados ou bloqueadores da expansão da rede.

7.      Suporte na expansão: Muitos novos entrantes no sistema começam atuando na área comercial, são corretores de imóveis, de shopping centers, vendedores em geral. Há uma fase inicial e uma fase habitual de crescimento acelerado, os norte-americanos chamam isto de “walking before running”. Zona cinzenta 10: profissionais não qualificados e de perfil transigente concordam com todas as preferências e exigências dos potenciais franqueados, aumentam, inventam fake news e falsa autoridade, prometem e não cumprem, jogando uma verdadeira bomba-relógio no colo dos franqueadores que por sua vez foram convencidos a contratar estes profissionais com base em argumentos idealizados e distorcidos. A expressão “aceleração de franquias” se refere simplesmente a uma fase da expansão de uma rede, porém foi distorcida no Brasil. Corretores de shopping pretendem ganhar comissão do shopping e também da franqueadora, potanto das duas pontas, sem saber avaliar perfil de franqueado. Estão mais interessados no perfil do fiador, afinal corretores de shoppings são os únicos que ganham em caso de insucesso do negócio, pois “vendem” o mesmo espaço repetidas vezes e não são bonificados no caso de lojistas que renovam seus contratos de locação. O perfil ideal será sempre o do franqueado investidor e empreendedor, exceções devem ser tratadas sob condições muito especiais. Cada macaco no seu galho e evitar conflito de interesses deveria ser o mote nesta atividade.

8.      Suporte de gestão às redes: No day after da venda de uma franquia, passa a existir uma demanda contínua e permanente por serviços de suporte e acompanhamento de gestão! O mapeamento de processos, fluxograma de procedimentos e indicadores de desempenho requer profissionais experientes em planejamento e organização e muito tempo de dedicação a campo nas operações. A formação e reciclagem de executivos de redes de franchising é oferecida por poucas entidades, caso da ABF, de pouquíssimas Universidades e de algumas consultorias. Zona cinzenta 11: Algumas empresas vendem soluções informatizadas não integradas, para uma ou outra determinada funcionalidade. Há muitos ruídos de comunicação e a equipe precisa trabalhar seu "mindset" de modo permanente. Sem dispor de verba assegurada para a manutenção dos sistemas de suporte de gestão e trabalho da equipe de capacitação permanente, supervisores de campo e consultores de campo, equipes precisam ser desmanteladas e muito conhecimento tático se perde ao longo do tempo. A confiança extrema em soluções prontas na forma de soluções em EAD ou cursos genéricos fornecidos por terceiros pode dificultar a evolução do know-how da franqueadora ao longo do tempo. Ex-franqueados que se tornaram franqueadores tendem a não conseguir manter o conhecimento de ponta ao longo do tempo, e a ter franqueados que não respeitam a cláusula de não-concorrência. 

9.      Internacionalização: O Brasil é um dos maiores mercados no mundo quando o assunto é franquia. Zona cinzenta 12: Ainda que represente um dos maiores mercados no mundo quando o assunto é franquia, o Brasil ainda é tímido na exportação e importação de franquias. Isto pode ser explicado pelo tamanho de seu mercado interno, pela relativa ausência de executivos com experiência internacional e sobretudo pelas características muito particulares do mercado brasileiro, em questões legais, fiscais e sobretudo comportamentais, que afastam redes internacionais não dispostas à adaptação de seu produto e da comunicação. Este mesmo fenômeno ocorre em países como Israel, Índia e Japão, que devem ser tratados individualmente e não como parte de um grupamento de países. Há restrições legais para a remessa de royalties ao exterior, pois dependendo da estruturação da organização no Brasil, impostos incidentes podem variar em quase 5 vezes, portanto há um know-how desconhecido das empresas em geral. Missões organizadas ao exterior com algum planejamento vêm obtendo resultados pontuais, com sucesso para produtos e serviços onde o Brasil possui alguma vantagem competitiva e as franqueadoras são bem sucedidas no registro da marca e obtenção de licenças de exportação. Por estas razões, a participação das vendas internacionais sobre as vendas totais ainda costuma ser baixa ou nula para redes de origem brasileira.

10.  Escalabilidade: O sistema de Franchising de fato permite obter escala na expansão de redes. Zona cinzenta 13: franchising não é uma estratégia adequada para qualquer empresa, há uma série de requisitos para enquadrar uma empresa e adotar esta estratégia, quem afirma o contrário quer vender alguma coisa a alguém porém não uma consultoria: há um laudo de franqueabilidade a ser aplicado. E franchising com raras exceções não é para StartUps e sim para ScaleUps, com mais de 2 anos de atividade em busca de escalonar ou exponenciar seu crescimento. A verdade é que nem toda empresa busca um crescimento acima de 100, 200 unidades ou mesmo ilimitado, isto depende da estrutura e dos limites impostos pela capacidade financeira, mercadológica, tecnológica, logística e organizacional da empresa! E, embora se tente, não dá para clonar pessoas e talentos humanos com tanta facilidade! Alegar que franchising é uma estratégica de crescimento de empresas que deveria permitir a qualquer rede atingir a cada de centenas ou milhares de unidades mexe com o brio de franqueadoras, sobretudo as mais frágeis, que não compreendem plenamente a complexidade e os conflitos de interesse envolvidos neste processo, muito menos os riscos do crescimento a qualquer custo. Assumir pesados custos fixos cobertos com entradas variáveis constituídas por taxas iniciais é motivo de quebra de franqueadoras inexperientes. Crescimento não é nada sem controle.

 

Nossa conclusão é que o conhecimento sobre as “zonas cinzentas” do modelo de franchising quando aplicado na prática deveria ser de algo muito mais divulgado e debatido. Há pedras no caminho, mas existe o caminho das pedras! A imensa maioria dos problemas possíveis são reversíveis quando identificados a tempo. Além disso, o que é SUCESSO para uma pessoa ou organização pode não ser SUCESSO para outra! Esperamos que a percepção e a compreensão dos fatores essenciais envolvidos neste processo resultem em redes mais fortes e resilientes.

Daniel Alberto Bernard, 58, é Economista e Mestre em Administração pela FEA-USP. Ex-consultor da Roland Berger e da Arthur Andersen (atualmente Accenture), é fundador e Diretor Geral da NetplaN, consultoria por meio da qual assessorou diretamente cerca de 473 redes de franchising e negócios em rede ao longo dos últimos 33 anos, no Brasil e em outros 19 países. É autor de 10 livros publicados, sendo 8 deles sobre o sistema de franchising.

bacana, abrangente e muitos dedos nas feridas...

Kikuchi V

Executivo Sênior em Franquias | Especialista em Formatação e Expansão de Franquias

4 m
Juliana Rheinheimer

Especialista Jurídico | Franchising e Propriedade Intelectual

4 m

Daniel, excelente! É essencial termos o conhecimento das zonas cinzentas e sabermos reconhecer e agir nessas situações. Manter esse olhar atento e constante faz a diferença.

Paulo Mauro

Bachelor of Politécnica USP, Mackenzie and FGV

4 m

Parabens Bernard! Excelente artigo! Abs

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