Política
A POLITICALHA INVADIU A SOCIEDADE BRASILEIRA.
O clima vigente na atual eleição presidencial me fez relembrar uma importante passagem de Rui Barbosa, que costumava dizer que a "política e a politicalha não se confundem, não se parecem, não se relacionam uma com a outra. Antes se negam, se excluem, se repulsam mutuamente. A política é a arte de gerir o Estado, segundo princípios definidos, regras morais, leis escritas, ou tradições respeitáveis. A politicalha é a indústria de explorar o benefício de interesses pessoais" (in "Trechos escolhidos de Rui Barbosa". Edições de Ouro: Rio de Janeiro, 1964).
Provavelmente, Rui Barbosa deve ter sorvido esse pensamento a partir dos clássicos, especialmente das reflexões aristotélicas sobre a política como a ciência que "afina o espírito humano, educa os povos, desenvolve nos indivíduos a atividade, a coragem, a nobreza, a previsão, a energia, cria, apura, eleva o merecimento" (idem). Na filosofia aristotélica a política, no sentido que entendemos hoje, é a ciência que tem como escopo final a felicidade humana e coletiva da pólis.
Para quem acreditava nisso, Rui Barbosa deve ter sofrido ao descobrir que a política havia se transformado e em um lamentável jogo de intrigas, invejas e incapacidades, tendo, por isso mesmo, cunhado a expressão politicalha, pois para ele "a alcunha de politicagem" não servia sequer para traduzir corretamente "todo o desprezo do objeto significado". Por sua vez, o termo "politicalha", sim, possuía "o sufixo pejorativo" que "queima como ferrete, e desperta ao ouvido uma consonância elucidativa".
Pois bem, foi justamente essa "politicalha" que invadiu de maneira institucional a sociedade brasileira nas eleições de 2018, transformando a discussão sobre o futuro da nação brasileira em um "diálogo de surdos", no qual grupos antagônicos insistem em proclamar o absurdo do outro, olvidando-se por completo dos despautérios defendidos pela sua facção. Aliás, os partidos políticos no Brasil, depois das revelações da Operação Lava Jato, se assemelham a verdadeiras facções ou seitas, algumas, inclusive, controladas por um "líder espiritual", que mais se assemelha a um messias, e que faz questão de estimular o discurso do medo e do ódio, tudo isso envolto em um realce inócuo de uma utopia do passado, nostálgica e convenientemente ressuscitada para demonstrar a perda completa da esperança de alcançar a felicidade em algum lugar idealizado no futuro.
Nesse cenário de profunda retrotopia, como bem destaca Zygmunt Bauman na sua última obra, os principais candidatos à presidência, principalmente aqueles que lideram as pesquisas de intensão de voto, apresentam-se com um discurso vago, impreciso e sem qualquer conteúdo pragmático, mas permeados de elementos históricos, como se o passado pudesse ser ressuscitado. Detalhes técnicos são omitidos, pois a revelação de todo e qualquer elemento operacional é um equívoco causado pela descrença, motivada por dúvidas convenientemente lançadas pela seita adversária. Assim, a candidatura não é uma proposta em si, trata-se de algo maior, uma missão divina, como se a inscrição do candidato fosse uma necessidade messiânica de salvar a nação brasileira das mazelas que misteriosamente nenhum deles ajudou a criar. É um festival de exposição de erros alheios, como se todos fossem meros anjos caídos, recém aparecidos no complexo sistema político nacional. “É sempre mais fácil achar que a culpa é do outro”, já dizia Raul Seixas em uma determinada canção, mas no caso da "politicalha" nacional isso parece que se tornou um mantra.
Nas eleições presidenciais de 2018 a discussão de propostas, modelo do Estado, papel do Governo Federal ou soluções para enfrentar a encruzilhada que foi armada nos últimos anos é inexistente. Nada disso importa ou interessa, pois no passado vivia-se muito melhor. É preciso manter a tradição eleitoral brasileira, relegando a um plano acessório todas as questões que deveriam ser fundamentais. A única diferença, agora, é que essa estratégia tornou-se um elemento institucional, pois a pós-modernidade permite a desconstrução de toda e qualquer verdade, além da construção de estúpidas notícias cunhadas com o único objetivo de incitar mais ódio, gerar mais medo e fomentar mais insegurança. Algo que poderia parecer lógico ou previsível em pleitos passados, atualmente pode não significar absolutamente nada e quiçá explique a nítida polarização dessas eleições.
Assim, meio sem querer, eleitorado brasileiro foi transformado em um refém, incapaz de produzir ou gerar qualquer análise crítica, dúvida ou contestação. O eleitor, sem perceber, foi reduzido a condição de sectário, instado constante a defender cegamente, muitas vezes pelo medo, valores pessoais propagados pelo seus respectivos líderes, pouco se importando a completa ausência de ética do lado que representa.
Obviamente, o mundo seria perfeito, como já afirmava Platão, se os homens fossem modestos e concordassem em levar uma vida simples. Ocorre, no entanto, que os nossos homens públicos vivendo no encantado Reino de Brasília são dominados pela cobiça e pelo luxo, vivendo uma realidade completamente distinta da maioria dos seus próprios eleitores. E, nesse processo de distanciamento da realidade, acabam se envaidecendo pelo uso da “res publica”, esquecendo-se que estão, apenas, desempenhando uma função. Disso resulta um Estado com funções completamente invertidas ou distorcidas, que constantemente invade o território do legal e moral, cuja principal característica é a incapacidade de cumprir com suas funções mais básicas.
É nesse processo que a figura do messias ou do salvador acaba ganhando uma relevância ilógica, pois se o Estado e os seus representantes tivessem operado corretamente, nada e ninguém necessitaria ser salvo. E, foi justamente por meio de estratégicas mutações políticas construídas ao longo dos últimos anos que a os partidos políticos brasileiros substituíram a arte de governar (política) pela "politicalha", transformando batalhas pessoais em supostas bandeiras de campanha, alterando o conteúdo de público para próprio e convertendo princípios éticos a uma simples questão de fisiologismo político-partidário. Nesse sentido, é fácil perceber que cada candidato ou representação político-partidária deixou de ter um programa ou uma linha ideológica e passou a defender apenas os objetivos pessoais de uma determinada pessoa.
Na democracia o princípio básico deveria ser a liberdade, mas no modelo brasileiro nossa liberdade é transferida a um Estado hipertrofiado que ocupa tudo e não fiscaliza nada, como se fosse uma espécie desvirtuada ou antítese do Leviatã Hobbesiano. Infelizmente, essa situação só pode ser solucionada pelo advento de um modelo de tirania, que nada mais é do que a triste realidade de um povo quando apenas um homem se proclama o protetor do povo e tenta em nome da própria liberdade empalmar o poder.
Atualmente, duas seitas parecem que irão polarizar o segundo turno das eleições presidenciais, ambas alicerçadas no mesmo modelo tirânico. O pior é que ninguém parece se incomodar com isto. Nossos futuros governantes, sejam eles quem for, por mais absurdo que possa parecer, serão eleitos pelas artimanhas políticas construídas em cima do medo da seita adversária, jamais pela própria aptidão ou pela capacidade de apresentar soluções.
Gerações futuras irão se perguntar, como nós podemos ter permitido isso. Nossa curiosa resposta será: não sabíamos!