Por que é tão difícil encontrar propósito no trabalho?

Por que é tão difícil encontrar propósito no trabalho?

No Brasil, cerca de 90% das pessoas são infelizes no trabalho. Isto é, a cada 10 amigos ou colegas seus, nove não encontram satisfação em suas atividades profissionais. E ainda, destes nove, seis acreditam que deveriam buscar por uma nova carreira que os tornassem mais felizes.

Em um país que está na casa dos 14 milhões de desempregados, pode parecer de uma absurda ingratidão que alguém trabalhando esteja descontente com sua atividade. Por isso mesmo, esses seus nove amigos provavelmente permanecerão em seus empregos, ainda que infelizes, temendo um desalento ainda maior. É claro, isso gera sofrimento.

É no déficit emocional gerado por esta situação que uma palavra entra em evidência: o tal do propósito. Mas o uso inflacionado de um termo tende a causar um desconcerto entre o próprio termo e a realidade que ele pretende representar. Quando muito usadas, certas palavras passam a ter significado elástico e impreciso -- e parece ser este o caso de “propósito”.

No dicionário, propósito é sinônimo de finalidade. No ambiente religioso, é um termo envolto de mistério: os desígnios de Deus são indecifráveis e seus propósitos são opacos. No mercado de trabalho contemporâneo, o propósito mantém esta mesma opacidade.

Por “propósito”, tenta-se resumir todo um conjunto de metas e intenções que se ofereçam como receita da felicidade produtiva, ou panaceia para a insatisfação no dia a dia. Mas o que de fato é considerado satisfatório ou feliz permanece um mistério.

Seus conteúdos englobam desde dicas contra a procrastinação ao estabelecimento de compromissos socioambientais. Por isso mesmo, é uma palavra que quer dizer tudo, e ao mesmo tempo não diz muita coisa.

Há dois pecados, porém, na maneira como se bate esse imenso papo sobre propósito:

1) A crença no propósito como construção hiperindividual;

2) A palavra faz parte de uma paisagem discursiva, em geral, acrítica ao mundo do trabalho e o que ele se tornou em tempos recentes.

Para que a palavra tenha, realmente, potência para comunicar algo mais significativo, deveríamos revê-la dando alguns passos para atrás nestes dois erros supracitados.

Bullshit jobs x Hero Jobs

O antropólogo e ativista estadunidense David Graeber tornou-se conhecido, em 2013, por um ensaio, depois tornado livro, sobre pessoas que faziam trabalhos sem sentido.  Em geral, seriam empregos enfadonhos em que o trabalhador era pago para basicamente fazer nada ou muito pouco.

Parece o emprego dos sonhos? Receber para checar suas redes sociais o dia todo? Pois não é! Muitos dos testemunhos revelam pessoas extremamente frustradas e cansadas de sua situação.

Graber chamou esse tipo de trabalho de Bullshit Jobs, aquele empregos sem sentido e repetitivos no qual a pessoa trabalha sem ter um senso de que esteja, de fato, contribuindo de alguma forma para alguém ou produzindo algo útil. Em outras palavras, um bullshit job é um ofício sem importância, mas quem trabalha nele precisa fingir que tenha alguma. Porém, fingir tanto é o que torna tudo tão cansativo.

Empregos assim, segundo Graeber, podem se manifestar de várias formas e, em todas elas, não haveria necessidade alguma de existir alguém exercendo aquela atividade. Há aqueles que só existem para que superiores se sintam mais importantes do que de fato são, como assistentes administrativos e vallets de estacionamento. Ou aqueles que estão lá para resolver problemas que não deveriam existir, como funcionários de linhas áreas que tentam acalmar passageiros que tiveram sua bagagem extraviada.

A paisagem discursiva atual sobre o “propósito” nos convenceria que, independentemente de qual emprego se ocupa, cada funcionário ou trabalhador deveria se dedicar amplamente no que faz e convencer-se de sua importância. Mas Graeber demonstrou ser desgastante justamente esta tentativa de convencer-se de que algo é o que simplesmente não é.

Esse primeiro argumento já permite entender que, quando se trata de propósito, não seria uma narrativa individual a conferir sentido ou finalidade às nossas atividades se estas mesmas não têm sentido nem finalidade no próprio sistema que as concebe.

Ora, mas se esta afirmação estiver correta, o contrário também deverá ser verdadeiro: pessoas que encontram o tal propósito também não fizeram isto sozinhas.

Graber também fala em Hero Jobs, ou os empregos dos heróis. Ao contrário dos bullshit jobs, estes outros empregos são muito imbuídos de sentido e finalidade. Temos a impressão de que são essenciais, de que alguém deve realizá-los mesmo que nas condições mais extenuantes. Policiais ou bombeiros são os primeiros exemplos que vêm à mente. Professores, talvez, logo em seguida. Ou ainda, durante a pandemia, chamamos de serviços essenciais atividades de limpeza urbana ou delivery.

Ser tratado como herói não implica em maior satisfação com o emprego. Professores são um caso emblemático disso. Uma pesquisa com mais de 1,3 mil pais de estudantes brasileiros revelou que 89% reconheceram ainda mais o desafio e a importância dos professores durante a pandemia que vivemos. É seguro afirmar que a classe saiu mais respeitada desse processo todo. Ainda assim, 77% não se sentem valorizados, embora tenham muito orgulho da profissão.

Os tais hero jobs, ou estes trabalhos com propósito por excelência, não se traduzem em maior satisfação dos profissionais porque, ao que parece, propósito não é sinônimo de altos salários. Em nome do “propósito”, alias, desejamos que esses profissionais deem muito mais de si ainda que em condições muito adversas.

A reflexão de Graeber nos ajuda a identificar, portanto, o primeiro pecado. O que queremos chamar de propósito não pode ser perseguido enquanto algo que o indivíduo encontra para si mesmo.

A noção de que a nossa contribuição faz a diferença no meio em que trabalhamos é resultado daquilo que um coletivo de pessoas é capaz ou não de articular. Os que tentam se convencer de que há propósito em seu trabalho não conseguem, porque o coletivo não o faz junto com eles. E os que têm propósito não raro se sentem desvalorizados, porque coletivamente o propósito não se traduz em valorização de fato.

O que aconteceu com o trabalho?

Ainda é preciso saber o que nos trouxe efetivamente até este ponto. E para tanto, precisamos pensar criticamente o que o trabalho representa ao longo do tempo até chegar aos dias mais atuais. É uma tarefa longuíssima e impossível de ser cumprida em um breve ensaio, mas que posso me atrever a começar ainda que panoramicamente.

Em seu livro Pós-História, o filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser toma para si a essa mesma tarefa. Ele divide a história do trabalho em três seções divididas por tipos de trabalhadores: o camponês, o operário e o funcionário.

O camponês vivencia a realidade de modo diferente do operário. A agricultura é uma manipulação paciente da natureza, que aguarda pelos seus ciclos. Não se pode ter o que a terra não dá. Já na indústria, território do operário, a manipulação da natureza é violenta, obrigando-a a encaixar-se em modelos pré-definidos. O camponês espera para que o animal e a planta se desenvolvam, já o operário obriga a matéria-prima a conformar-se em um produto.

Por isso mesmo, a ética do camponês é conservadora. Para ele, o propósito do seu trabalho é ocupar lugar justo na ordem do universo que lhe foi predestinado. Já a do operário é revolucionária: seu propósito é viver o resultado de sua obra e, quando a sua parte lhe é negada, irá agir para estabelecer uma distribuição das riquezas geradas.

Em ambas, o propósito é elaborado enquanto questão política. A grande pergunta por trás do propósito é: qual é o meu lugar na ordem de coisas que eu vivencio e na comunidade de pessoas com quem as partilho?

Mas não vivemos mais na era feudal nem na industrial. Vivemos na era dos funcionários. Eles, os funcionários, se sentam por detrás de escrivaninhas e recebem papéis, números, códigos e algoritmos da mão de outros funcionários. Eles arquivam esses códigos e produzem ainda outros, na forma de mais relatórios, códigos e planilhas.

A ação do funcionário, então, não mais visa alterar o mundo concreto, mas o mundo dos códigos. São funcionários porque funcionam dentro de sistemas previamente desenhados com o objetivo de gerar mais códigos, mais dados, mais papéis e mais números. É o caso de quem trabalha com mídia social, por exemplo: envolvem-se em uma atividade que visa alimentar um aparelho sequer proposto pelas pessoas que trabalham com ele.

Se entre camponeses e operários o tema do propósito se desenha enquanto questão política, para o funcionário o tal do propósito se enfraquece . Para o funcionário, politicamente, toda obra vai perdendo seu significado. O seu direito de gozar da vida não é ético, mas simplesmente formal. Enquanto o sistema “funciona”, os funcionários estarão bem.

O que nos leva ao segundo pecado mencionado acima: se pensarmos criticamente estas mudanças no trabalho, chegaremos a triste conclusão de que encontrar propósito, atualmente, não é mais possível. Porque, em algum grau, todos nós trabalhamos para algum sistema cujas finalidades não são totalmente compreensíveis para nós.

E mesmo o trabalho aparentemente mais essencial não confere ação prática diante do mundo. Apenas alimenta alguns programas que são, estes sim, os protagonistas da economia, e não mais as pessoas.

O propósito do "propósito"

Ora, se o propósito não é possível, resta saber porque se fala tanto dele. A inflação de uma palavra nem sempre é indício de sua importância no contexto em que vivemos, mas é sinal de um déficit tremendo pelo qual estamos passando. Falamos muito de propósito porque esta é, talvez, a coisa que mais falta no mercado de trabalho.

A hiperindividualização do discurso sobre propósito, inclusive, é um tremendo esquema para nos distrair do fato de que, coletivamente, há poucas condições favoráveis para que nos sintamos mais motivados naquilo que fazemos. Ignorar o entorno e voltar-se a apenas si mesmo é um ótimo jeito de nos manter focados no que nos interessa a mais curto prazo: garantir nossa própria vida e pagar nossas contas.

O tema do propósito no trabalho, hoje, nos oferece uma noção mais individual inclusive do que seja a nossa liberdade. Afinal, se não há nada a ser feito em grande escala para nos tirar dessa situação, poderíamos nos voltar a decidir por nós mesmos aquelas pequenas coisas que nos aliviem. É nesse lugar, por exemplo, que nada de braçada o discurso do empreendedorismo.

Empreender, hoje, se tornou uma espécie de hero job ainda mais glorificado. Com ele, nós nos convencemos a trabalhar muito mais e a arriscar muito mais em nome de um tal propósito, como também ajuda a entender Byung-Chul Han em seu Sociedade do Cansaço. Porém, as condições coletivas (e portanto políticas) de empreender são poucas e adversas.

Enquanto isto, estamos mais preocupados em discutir o empreendedorismo por um prisma motivacional do que estrutural, de fato. Como resultado, pessoas irão sacrificar muito mais do que poderiam em nome desse propósito sem compreender sequer porque têm falhado tão recorrentemente.

O problema desse tipo de propósito, portanto, é o de ser despolitizado: ele não se dedica a pensar as condições de vida em que nos encontramos coletivamente, mas concentra no indivíduo toda responsabilidade tanto pelo sucesso quanto pelo fracasso. 

Não se trata de encontrar propósito no trabalho, mas de construí-lo coletivamente. Trata-se da questão política de como iremos manejar o fluxo entre o público e o privado, entre o individual e o coletivo. O que chamamos de propósito é um fenômeno comunicacional, portanto, de pessoas que conseguem atribuir, identificar e compartilhar valor umas com as outras.

Não é preciso convencer-se de que faz algo relevante, mas sim saber o quanto a sua ação é importante ao compreender, de fato, os efeitos que ela gera ao seu redor. O que não exclui, é claro, o tal empreendedorismo, mas o força a fazer sentido dentro de um contexto que não seja tão individualizante. Ou seja, o empreendedorismo deve ser pensado politicamente.

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