Por que as empresas chinesas massacram as gigantes de tecnologia estrangeiras aqui na China?

Por que as empresas chinesas massacram as gigantes de tecnologia estrangeiras aqui na China?

O sucesso vem para aqueles que trabalham duro e é por isso que as empresas de tecnologia chinesas estão ganhando a guerra por aqui.

Nos últimos anos venho observando de perto e pesquisando muito sobre o mercado chinês, suas start-ups e, principalmente, o cenario de evolucão da tecnologia. Nao é raro ler diversos artigos declarando que os gigantes da tecnologia chinesa tem que agradecer o governo chinês por seu domínio na mainland.

Para citar um exemplo, a Bloomberg publicou um artigo no início de março intitulado “O protecionismo da China cria bilionários tecnológicos que protegem Xi”, com o autor afirmando: “Isso ajudou a criar gigantes nacionais prósperas, incluindo a Tencent e o Alibaba.” No mesmo artigo, o diretor de uma consultoria, com sede em Beijing, foi citado como autor da frase: "Enquanto eles permanecerem protegidos no mercado chinês, eles vão dominar e usar esse dinheiro para financiar sua expansão global".

Seria muito simples chegar à conclusão que, caso o cenário fosse outro, as empresas chinesas não teriam chance contra seus pares de fora, certo? Na minha opinião, errado!

No final do ano passado, um diretor da Microsoft, que trabalhou muitos anos por aqui, relatou que, certo dia, conversando com um executivo de uma companhia chinesa, ouviu o seguinte: "No começo, eu só ia copiar você, mas agora vou esmagá-lo". Na época ele não sabia se ria ou ficava assustado, hoje ele sabe!

Todos temos conhecimento que as empresas chinesas copiaram as americanas com pouco ou nenhum remorso. O impressionante é que agora estão começando a inovar em uma velocidade que o mundo nunca viu, particularmente para o mercado interno.

Não tenho dúvidas que as empresas de tecnologia chinesas esmagariam Facebook, Twitter e até o Google na China, mesmo que elas não fossem banidas. E digo isso com tranquilidade, por alguns motivos:.

 - Trabalho duro e implacável

Para entender melhor como funciona o conceito de trabalho do mercado de tecnologia aqui na China, deve-se conhecer o conceito “996”. Este conceito define o modo de trabalho das companhias deste segmento. Caso você ainda não esteja familiarizado, as empresas de tecnologia aqui trabalham regularmente 996, ou seja, das 9h às 21h, seis dias por semana. Uma das coisas que deve-se ter bem claro sobre o mercado chinês é que para vencer por aqui se exige nada menos que trabalhar muito, mas muito mesmo, em quantidade e qualidade.

 Elon Musk disse em uma entrevista: “Work like hell (…) you just have to put in 80 to 100 hour-weeks every week”.  Ele ainda complementa dizendo: “Se outras pessoas estão trabalhando 40 horas por semana e você 100 horas, então, mesmo que vocês estejam fazendo as mesmas coisas, você sabe que vai conseguir em quatro meses o que os outros levarão um ano."

É claro que a sugestão do sul-africano recebeu duras críticas da imprensa ocidental, argumentaram que trabalhar mais de 50 horas é contraproducente.

Uma das minhas publicações preferidas, a Harvard Business Review também deu seu parecer: "Em suma, a história de excesso de trabalho é, literalmente, uma história de retornos decrescentes: continue trabalhando demais e você vai trabalhar cada vez mais estupidamente em tarefas cada vez mais insignificantes".

Eu concordo que o excesso não é produtivo e isso vale para muitos cenários, mas percebi que o que esses jornalistas e pesquisadores não estão enxergando é que na era da tecnologia, quando você tem os ciclos de feedback mais rápidos da história, trabalhar 100 horas por semana pode funcionar. Funciona pelo simples fato que você obtém o produto mais rapidamente e recebe os comentários dos clientes mais rapidamente. Isso leva à iterações mais rápidas e um produto aceito pelo mercado em tempo recorde. Uma equipe de desenvolvimento trabalhando 100 horas versus 40 horas realmente faz a diferença. Na era digital, timing conta muito!

 A Tencent dita regras por aqui e ver o jeito que trabalham e desenvolvem os projetos é algo bem interessante. Quando estavam atualizando o jogo multiplayer Battle Royale Player Unknown's Battlegrounds, eles criaram um modelo vencedor: todos os três times de desenvolvimento trabalharam 24 horas por dia, revezando as cabeças das equipes em turnos de codificação de 12 horas, em diferentes iterações do jogo. A equipe que criou a melhor versão recebeu como prêmio um bônus bem gordo. Não é por acaso que esses caras hoje são os maiores do mundo em desenvolvimento de jogos, e, não por acaso, dominam a indústria aqui na China.

 Mais uma vez, a China não inventou essa estratégia. Nos anos 80 a Apple fez isso com os times do Apple II vs. Mac. Ainda temos o exemplo da Microsoft, em que os edifícios foram originalmente criados para feudos de produtos separados, para fins semelhantes.

O importante é perceber que Baidu, Alibaba e Tencent, apesar de seu tamanho, ainda podem operar dessa maneira. Isso é posicionamento e cultura local implacáveis e obsessão pelo cliente. E ainda não precisam se preocupar com a mídia reportando as condições de trabalho severas ou uma reação de mídias sociais ao conceito "996".

Minha conclusão neste tema é que um sistema em que todos os funcionários trabalham de 60 a 70 horas por semana não é replicável, mas, por aqui, os chineses realmente fazem isso, e, geralmente, sem reclamar. Os pares do outro lado do mundo simplesmente não conseguem acompanhar esse ritmo, especialmente no monstruoso mercado interno.

 - A maioria das empresas globais de tecnologia tratam a China como apenas mais um mercado

 Quero deixar claro uma evidente distinção entre o modo como as empresas de tecnologia operam e como, digamos, as empresas de automóveis operam na China. O chefe na China para muitas das empresas automobilísticas se reporta diretamente ao CEO global da empresa. Ele comunica claramente que a China é seu próprio mercado, único e separado.

 Atualmente, em poucas empresas de tecnologia o CEO da China reporta direto para o principal executivo global, e isso me faz entender que elas acreditam que separar a China do negócio como um todo não faz sentido. Assumindo que isso seja verdade, é difícil para qualquer empresa ser dominante por aqui, porque não é algo que está sempre na mente dos líderes globais da companhia.

 O outro problema em tratar a China como apenas mais um mercado é criar um grupo grande de gerentes, burocratizando o processo todo.

 A maioria dos chefes da China é brilhante, com boa conexão com o headquarter e inteligentes, mas eles ainda têm uma chefia acima e precisam gerenciar outros recursos da empresa. De acordo com um relatório da McKinsey, apenas 20% dos CEOs da China se reportam diretamente aos CEOs globais, o que sugere que existem níveis de gerenciamento que precisam ser (sem ser redundante) gerenciados, o que atrapalha (e muito) a velocidade de operação.

Além disso, especialmente com indústrias mais focadas no produto, como a tecnologia, muitas vezes um CEO da China não está equipado ou capacitado para maximizar o sucesso. Vou dar um exemplo: a maioria das pessoas que trabalham no backend ou algum “upstream work” de tecnologia, como supply chain ou desenvolvimento de produtos, raramente ou nunca se reportam ao CEO da China.

 O CEO chinês tende a ser apenas o proprietário do mercado, o cara que corre atrás das vendas, mas limita sua capacidade de operar com a mesma velocidade que seus concorrentes locais de tecnologia, que tem como principal objetivo o mercado interno e ainda possuem equipes de produtos inteiras, 100% dedicadas a esta finalidade.

Como se pode esperar que algum gestor derrote um concorrente mais rápido e implacável se ele não tiver o produto com fit para o mercado chinês? Realmente não é uma luta justa. #uberfeelings

 - Posicionamento e cultura local

A maioria das empresas de tecnologia de fora que vêm para a China tentam importar os aspectos de sucesso de seus modelos de negócios. Vivendo por aqui fica muito claro porque isso não funciona.

Um ótimo exemplo é novamente o mercado de jogos. Quando empresas de jogos do lado oeste do mundo chegam à China, adotam seu modelo de negócios tradicional, no qual você paga por uma licença e pode jogar. Por aqui não é assim que funciona o jogo, e nunca foi assim. A Tencent, por exemplo, foi a pioneira da inovação freemium, onde todos os jogos podem ser jogados, mas os jogadores pagam por itens premium. Isso fez com que a empresa criasse alguns dos jogos mais lucrativos do mundo, como o Honor of Kings. Confesso que parei no Playstation II há mais ou menos 10 anos, mas acompanho de perto o mercado de games e sou fascinado pela evolução, apenas não tenho mais paciência para ficar horas em frente à tela.

Na indústria de tecnologia ainda não existe uma empresa estrangeira que criou um modelo de negócios completamente separado para o mercado chinês. Há muitos casos em que as empresas desenvolvem algo específico, como a criação de um escritório local, uma joint venture ou até mesmo preços diferenciados. Mas alguém dizer: "esse é o nosso modelo de negócios especial para a China e não usamos em qualquer outro lugar" ainda não vi acontecer com o mercado de tecnologia, acredito que muito por culpa do conceito de escalabilidade, que tenta fugir de qualquer grau de customização.

Hoje mesmo, se pegarmos as funcionalidades e modelos de negócios do Facebook em todo o Facebook.com, Instagram e WhatsApp fora da China, não vejo a menor chance de competir com todo o ecossistema do WeChat dentro da China.

Por mais lobby e palestras em mandarim que o Mark faça para tentar liberar suas plataformas no país, competir na China seria realmente uma luta muito mais difícil do que a que ele enfrenta atualmente no congresso Americano.

 - A Amazon opera livremente e continua perdendo para Alibaba e JD.com

Enquanto Facebook, Twitter e Google são bloqueados por aqui, a Amazon não, e não há restrições no mercado de comércio eletrônico. Quer chutar o share da Amazon na China hoje? Menos de 2%!

 E o case da Amazon não é o primeiro de uma gigante americana de comércio eletrônico perder a concorrência na China. O eBay foi esmagado pelo Taobao; o Groupon tentou entrar bem armado, com mais de US$1 bilhão em caixa, meta de 1.000 colaboradores e um objetivo de contratar os melhores consultores da McKinsey. O que o Groupon China conseguiu? Nem mesmo o seu próprio nome! :s

Para sair um pouco do comércio eletrônico, temos o Uber, que sangrou o caixa, injetando mais de US$1 bilhão na China e foi simplesmente engolido pelo Didi, seu concorrente local, mais ágil e implacável. Eu usava o Uber, agora uso o Didi, fica claro que é um produto melhor.

 No Brasil, o Didi recentemente adquiriu 100% da 99 e vi que já estão moldando o produto para ficar com a maioria das funcionalidades da versão chinesa. Prevejo briga das boas dessa dupla em outros mercados.

 - Conclusão

 Eu entendo perfeitamente a perspectiva da Bloomberg, da Harvard Business Review e outras mídias estrangeiras, já fui um dos que corroboravam com essa visão.

O fato é que respirando esse ambiente, vendo de perto como e por que as coisas se desenvolvem, conhecendo algumas das companhias locais e suas operações por dentro, pra mim, fica claro a tendência de se exagerar sobre a importância do banimento do Facebook, Google e Twitter.

Os artigos e reportagens acabam caindo nas já familiares narrativas relatando o conluio dos empreendedores de tecnologia chineses com o governo.

A verdade, que não parece ser tão legal, dessa questão é que, como muitos não querem admitir, as empresas de tecnologia chinesas são bem-sucedidas porque são companhias genuinamente bem administradas, com grandes líderes, que sabem executar perfeitamente e não têm medo de inovar.

Infelizmente, uma manchete "bilionários da tecnologia chinesa gerenciam bem as empresas" não seria uma isca para cliques tão grande quanto "Protecionismo na China cria bilionários da tecnologia que protegem o Xi".

Não devemos ter medo de aprender com quem faz melhor, nunca!

Thiago Levenhagen Lopes

LATAM Expansion | Sales & CXA Specialist @ActiveCampaign

6 a

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