Por trás da mesa de trabalho, há um coração batendo
Foto: Sharon Eve Smith

Por trás da mesa de trabalho, há um coração batendo

No começo, eu chamava “teaching moments” – quando ele começava a me explicar uma, duas, três vezes seguidas sobre algo que eu tinha muito conhecimento (eu era especialista na função na época) ou começava a me contar coisas de um jeito professoral, normalmente experiências que eu já havia vivenciado, mas que não faziam diferença alguma para ele – o mais importante era ele me explicar, me dar coaching, falar – nunca ouvir. Passei dois anos com a sensação de que eu estava fazendo algo muito errado, que eu não conseguia mais entender o que ele queria dizer, e que eu tivesse emburrecido, pois ele passava horas me explicando e explanando sobre o mesmo assunto, até que um dia me deparei com esse artigo aqui do Portal Universa e esse aqui do Huffpost, que me mostrou haver um nome técnico e mais chique para essa situação constrangedora – Mansplaining, “quando um homem dedica seu tempo para explicar algo óbvio a uma mulher, de forma didática, como se ela não fosse capaz de entender. O termo é uma junção de “man” (homem) e “explaining” (explicar)” – Mais detalhes sobre essa mania e outras aqui no Movimento Mulher 360. Comecei a prestar atenção a cada detalhe, virei uma antena de mansplaining e percebi que não era só ele quem atuava desta maneira, encontrei muitos outros com o mesmo perfil (mas aí isso é assunto para outro post, vamos focar nesse caso específico aqui que já dá bastante pano pra manga).

Cada manhã era um sofrimento, e eu ia me arrastando para o trabalho só de pensar que teria que passar por essas sessões infinitas de explicações sem fundamento.

Em alguns momentos, cheguei até a me sentir ingrata, pois trabalhava em uma empresa moderna, que valorizava a qualidade de vida dos funcionários, que tem café da manhã e almoço de graça e que principalmente prezava pelos indivíduos e diversidade – como eu poderia estar carregando esse peso tão grande nas costas trabalhando na empresa dos sonhos de muita gente?

Quando checava minha agenda e havia uma reunião individual com ele, me dava calafrios, pois eu sabia que seria mais uma hora da minha vida ouvindo coisas que eu já estava cansada de saber e que depois receberia alguma cobrança descabida. As atitudes, ao longo do tempo, também passaram a ter um certo tom de agressividade. Agora eu não só tinha que passar pelo tal mansplaining como passei a ser interrompida nas minhas falas e receber feedbacks constantes sobre minha baixa performance - apesar de sempre atingir minhas metas e alcançar os objetivos traçados. Comecei a ouvir que eu não parecia “tão sênior” quanto eu deveria ser e que ele não sabia mais o que fazer comigo. Cheguei a ouvir que ele estava sendo cobrado pelos seus pares a “fazer algo comigo”, porque afinal eu não tinha “liderança” ou “pensamento estratégico”, e as "pessoas estavam percebendo". Todas as minhas idéias passaram a ser negadas uma após a outra e recebia cobranças injustificadas de tarefas que não haviam sido combinadas anteriormente. Desde que ele entrou na empresa, minhas avaliações de resultado mudaram da água para o vinho, sem maiores explicações. Embora eu sempre entregasse e comprovasse tudo que havia me comprometido, ele me cobrava de outras tarefas que nunca havíamos conversado antes e justificava com isso uma avaliação abaixo do esperado – eu era sempre surpreendida com essas cobranças, e se eu questionasse, ganhava mais uma sessão interminável de feedback. Muitas vezes, cheguei a abrir meu coração e dividir meus sentimentos com ele, para tentarmos começar do zero e ter uma relação mais saudável, e o que recebia em troca eram respostas agressivas e defensivas de que eu não deveria me sentir daquele jeito. O curioso era que esses episódio aconteciam sempre em uma sala fechada, em um 1:1, só eu e ele, sem testemunhas. Com o tempo, a situação foi piorando, e passei de idealizadora dos projetos individuais à pessoa que reserva salas e faz cotações de café da manhã - toda minha autonomia foi tomada e todo meu potencial de entrega varrido para baixo do tapete. Ele, aos poucos, roubou minha auto estima e minha motivação, e consequentemente, minha vontade de melhorar. As minhas ideias passaram a ser tratadas com desdém e com o tempo, passaram a nem ser mais ouvidas.

Era a primeira vez que eu, em mais de 15 anos de carreira, me deparava com uma mente tão manipuladora e eu realmente não sabia o que fazer. Ficava em vão tentando entender o que eu havia feito de errado, fazia análises mentais das minhas ações, pedia feedback para outras pessoas, me torturava e me culpava todos os dias.

Propunha ações diferentes, trazia novas iniciativas, mudava a forma de interagir com ele, mas nada parecia bom e eu só recebia a resposta de que ele esperava que eu fizesse o que era pra ser feito sem ele ter que me falar. Procurei ajuda – falei com a diretora da área, com RH, alguns gerentes, falei com Deus, rezei e fiz promessa, apelei até pro Santo Expedito para que as coisas melhorassem até que acabei abrindo uma investigação pelo canal de denúncias da empresa. Foi feita a investigação, e passadas 3 semanas tive o retorno: “conversei com diversas pessoas do time, e o feedback que recebi é positivo. Entendo que o problema pode ser com você apenas, mas eu não sei o que fazer, nem como resolver essas questão – você tem alguma sugestão?”. Péra! Eu abri um caso para pedir ajuda para o canal de integridade da empresa e agora eles estavam me devolvendo a bola e perguntando como resolver a situação? Era a minha palavra contra a dele, e eu não tinha como provar, estava de mãos amarradas, sofrendo em silêncio e angustiada, porque o que parecia para o restante da empresa era que eu e ele não nos dávamos bem, que era só uma questão de empatia e que não tínhamos sintonia. “Engole o sapo”, “não dê ideias, apenas obedeça”, “não pergunte nada, apenas faça”, “chefe é chefe”, foram apenas alguns dos conselhos que ouvi ao longo dessa jornada.

Começou a afetar minha saúde – em uma 2ª feira qualquer, logo após uma reunião individual com ele, em que ouvi novamente que ele não sabia mais o que fazer comigo e que, novamente, eu não era tão sênior quanto deveria, tive uma crise de ansiedade. Não conseguia parar de chorar, meu estômago doía, minhas pernas estavam moles, meu olho tremia. Fui para o PS, fui para o psiquiatra, comecei a fazer terapia, comecei a tomar ansíolitico e carregar Frontal na bolsa. A recomendação da médica era que eu tomasse Frontal quando sentisse medo antes de uma reunião com ele. E assim foi. Eu só aguentava as reuniões com ele depois de tomar um remédio - isso passou a ser rotina.

Entrei numa espiral de sofrimento, de ter medo de falar sobre o assunto, medo de me expor, medo de me posicionar, medo de ser ridicularizada, medo de ser emudecida.

Passei de uma funcionária exemplar, que performava acima das expectativas, que era valorizada e que ajudou a construir um business do zero no Brasil para a funcionária problema, que não tinha os "skills" a altura da função. Do dia para a noite, simples assim, e eu tive que engolir.

O fim dessa história é que acabei saindo da empresa, como era de se esperar, naquele momento com o sentimento de derrota, mas também de alívio e libertação. Continuo fazendo terapia para rever alguns desses sentimentos que às vezes vem à tona, mas tenho certeza que a página já está virada e que tenho um capítulo incrível a ser preenchido. É difícil reviver esses momentos e dormir com o sentimento de injustiça, mas é preciso falar e mostrar o que acontece muitas vezes com seu colega ao lado, pode até ser que você veja, mas é mais fácil fechar os olhos e não lidar com esse problema que também pode ser seu um dia. Todo mundo sabe que acontece, em sua grande maioria com mulheres, mas ninguém fala, poucos ousam te ouvir, é como se fosse um tabu. Depois do que passei, conversei com algumas mulheres e grandes profissionais amigas minhas, e é triste dizer, mas a maioria delas passa ou já passou por situação semelhante. O mais chocante é que a maioria dos casos acontece em até 2 anos pós retorno da licença-maternidade, exatamente como foi comigo – Leia mais aqui, neste matéria do El País.

O que aprendi com essa experiência? Se você um dia passar por algo parecido, não tenha medo e tente não se culpar. Procure ajuda, seja de um amigo, seja uma terapia, um mentor, um outro chefe com que possa dividir. As pessoas vão acreditar em você? Nem todas, mas as mais importantes vão. Principalmente, lembre-se de que não vale à pena perder as noites de sono, muito menos a sua saúde - esse tempo não voltará para você, então é melhor tentar se colocar fora da situação do que tentar resolvê-la. E finalmente: Resiliência - entenda que nada do que aconteceu ou do que foi dito muda seu estado natural, sua essência ou quem você é, não se deixe enganar :)

Essa etapa se encerrou, ficou pra trás e não faz parte de mim, mas eu ainda torço para que o mundo corporativo seja mais amigável com as mulheres.

Que a diversidade seja de fato encorajada, que as pessoas tenham mais compaixão e se lembrem que do outro lado da mesa há um ser humano, há alguém que tem uma história de vida, há um coração batendo, e não seja tratado apenas como mais um “recurso” dentro da empresa.

Sigo feliz, livre, sem remédios e apesar de tudo, me sinto grata pelos aprendizados e experiências únicas que tive. Estou sem aperto no coração, em paz e cheia de novos planos – na expectativa pelo que está por vir. Ainda tenho muito o que aprender, fazer e entregar.

Hasta! <3

 

 

 

Me identifiquei com você! Eu passei por coisa parecida, eu ja estava na franquia a 3 anos quando foi vendida e o novo dono me contratou. Era a subgerente e manteve meu cargo, ensinei a nova gerente ( e ela era mulher ) tudo que sabia sobre a marca e depois simplesmente eu nao sabia mais nada para ela, me diminuia sempre que podia, me humilhava.. enfim eu me sentia muito mal, porém ao comtrario de você eu contei tudo ao patrão e os colegas confirmaram tudo que acontecia. Resumindo eu fui demitida e ainda mal falada como fofoqueira e quem influenciou os colegas. Mas sigo feliz que ao menos eu não estou mais sofrendo com tudo que passava e estou muito bem longe desse emprego doentiu.

Renata Pereira

Psicóloga | 𝐄𝐧𝐭𝐮𝐬𝐢𝐚𝐬𝐭𝐚 𝐝𝐨 🅻🅸🅽🅺🅴🅳🅸🅽 | Mentoria e Consultoria de Perfil do LinkedIn | Facilitadora de Treinamentos Educacionais | RH | Coaching de Vida e Carreira | LGBTQIAP+ 🏳️🌈 | IG @renatabomvoar

5 a

Relato importante e comovente. Triste ler algo assim e saber que isso acontece todos os dias... Lamentável. Precisamos nos perceber e entender o cenário em que estamos inserid@s. Não podemos permitir que isso aconteça. Pois, nossa saúde e nossa vida, valem mais que tudo. Obrigada Fernanda, por compartilhar sua história. Gratidão!

Lia Vicente

Profissional sênior de marketing, empreendedora, e constantemente trabalhando no que me faz feliz

5 a

Entendi que você tinha uma sessões de coaching para se "ajustar" de acordo com o seu chefe/equipe/empresa ou simplesmente ao coach que te assessorava quando na verdade, ele é que deveria ser o ouvinte e dar o feedback correto/positivo e alimentador de motivação e autoestima. Faça coaching verdadeiro (em parceria com o seu coach): trabalhe o futuro (não considere o passado), foca o destino proposto, haja, obtenha o seu resultado e o mantenha com permanente melhoria contínua. Vá em frente que dá certo.

Aline N.

Administrativo e Novos Projetos na ABRAFESTA

6 a

Gratidão Fernanda por este relato! Passei exatamente por isso e também logo após a maternidade. Apenas agora, depois de ler seu texto, entendo o que aconteceu...e aliviada, vejo que não emburreci! Vida que segue e em busca de deixar tudo isso realmente para trás, sem traumas....Bjos.

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