Por uma prática doadora reflexiva
Foto: Joana Mortari

Por uma prática doadora reflexiva

Recentemente participei de um webinário do Trust-Based Philanthropy Project no qual ouvi três gestores de diferentes fundações americanas falando sobre o processo que os levou a questionar alguns dos paradigmas estabelecidos sobre o financiamento do setor social e a adotar práticas de doação mais participativas, com base na confiança.  Na mesma época, fiz uma doação para uma organização que admiro, liderada por seus dois fundadores, com os quais tenho uma ótima relação, que me fez pensar. Esta escrita é uma colheita deste do webinário, minha experiência com esta doação e as leituras de aprofundamento que seguiram. 


Do "estudo sobre" para a "conversa com". Muitas vezes me vi em espaços onde muitas pessoas liam sobre os problemas que certos bairros enfrentam, mas não conseguiam nos dizer o nome de alguém naquele bairro", escreveu @John Brothers, Presidente da fundação T. Rowe Price que participou do webinário, em um artigo-depoimento chamado "Do “financiamento confete” à cidadania efetiva". No campo filantrópico passamos do "o importante é ajudar" para o "precisa estudar e saber o que está fazendo". Estudar algo, ler sobre algo, é importante. Mas o que vem pela frente depois disso, e que  já está acontecendo em muitas práticas e existe faz tempo, é que estudar não é a mesma coisa do que sentar com as pessoas, formar laços, se relacionar e, a partir deste lugar, conversar sobre suas necessidades, vontades, sonhos. "Isso significava que tínhamos que aprender a ouvir as pessoas", concluiu Brothers, "E começamos a fazer exatamente isso - sentar nos porões das igrejas, nas salas de estar dos residentes e nos centros comunitários para ouvir o que as pessoas diziam que era realmente importante para elas".


Eu mesma, com um tanto de estudo e experiência prática como doadora e receptora de recursos, recentemente cometi um erro clássico. Dei notícia para uma organização na África do Sul sobre o valor que vou doar este ano e, sabendo que estava organizando um encontro internacional e que as pessoas estavam com dificuldade de ir, sugeri uso de parte dos recursos para um fundo de apoio às pessoas. Porque minha relação com os fundadores é muito próxima, e porque sabem que minha prática inclui, exatamente, a reflexão sobre doação, eles me escreveram contando como sentiram tolhidos de liberdade ao ver minha sugestão. Como diria minha filha, "BOOM"! Me peguei, sem nenhuma intenção de fazê-lo, amarrando a doação à minha vontade. Me esqueci de algo que eu já sabia: sugestões acompanhadas de dinheiro tem uma força incrível, por mais que conheçamos a pessoa do outro lado. Dinheiro é poder, e a sugestão se veste dele. Se minha reação é de responsabilizá-los por se sentirem assim, estou deixando de olhar para minha própria prática, contribuindo para uma flacidez da minha musculatura de reflexão sobre a doação que fiz.


De práticas filantrópicas pulverizadas, restritas e de curto prazo para… bom, o oposto. Se sabemos que mudanças sistêmicas são complexas e levam tempo, a serviço de que está uma prática filantrópica que escolhe distribuir pequenas quantidades de recursos no curto prazo e para muitas organizações? Se esta prática está sendo questionada há tantos anos, o que leva à escolha de continuar fazendo? "Grande parte da filantropia corporativa fornece o que é comumente chamado de financiamento confete: a ideia de espalhar dinheiro por toda parte para inspirar as comunidades a pensar que a empresa é feita de bons cidadãos", nas palavras do autor. "No lugar dessa abordagem, criamos uma teoria para promover uma cidadania efetiva e garantir que o impacto que buscamos seja decidido e alcançado pelas comunidades (...). Não há justificativa concebível para o financiamento restrito ao projeto (a menos que a comunidade diga para fazê-lo), e ainda assim muitos agentes filantrópicos ainda resistem ao financiamento irrestrito [de recursos] por vários anos". 


Achei interessante esta afirmação porque dizer que não há justificativa concebível é admitir que as justificativas existentes são inconcebíveis. A pergunta que me vem para apoiar a reflexão de quem lê é: quais são as suas justificativas para doações restritas e de curto prazo? Talvez seja uma necessidade de mostrar resultado de curto prazo atraída pelo fato de que há uma marca envolvida na prática filantrópica, talvez seu conhecimento sobre o campo tenha martelado estas ideais em você por 20 anos, talvez seja medo de errar, de "jogar dinheiro fora"... Seja qual for, há grandes chances de que a resposta diga mais sobre você do que sobre a organização, coletivo, ou empreendedor social que apoia. 


Por ter começado minha vida no setor trabalhando em uma organização social de atendimento, eu tenho um percepção vivida da diferença, para a organização, entre recursos restritos e irrestritos. Hoje em dia, com 22 anos de vida, esta organização tem experiência (e a segurança financeira) para desenhar projetos que façam sentido para sua prática e buscar apoiadores alinhados, usando os recursos irrestritos que tem para gerar o fluxo de caixa necessário para não ficar à mercê dos tempos do financiamento por projeto, mas sim  fazer acontecer o contraturno escolar de acordo com as necessidades das crianças e adolescentes que atende. Pode parecer lindo, e é, mas eu também sei o quanto tempo demoramos para conseguir chegar a essa realidade, o tamanho do investimento institucional que fizemos e, tão importante quanto, a consciência de que este equilíbrio só foi possível porque sempre tivemos recursos irrestritos que, exatamente, nos permitiram este investimento. 


Aqui estão. Espero que estas experiências apoiem o seu processo de praticar doações reflexivas! 

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