PROBLEMAS TECNICOS REQUEREM DECISÕES TECNICAS
No começo deste mês ocorreu uma Audiência Pública na Câmara dos Deputados sobre a estruturação do Leilão de Reserva de Capacidade de Potência, porém, o debate se concentrou sobre a autorização para participação de baterias no certame. Como acontece neste tipo de evento, ao final restaram mais dúvidas do que certezas, e a percepção de que se desejam participar que o façam. Mas, normalmente, a história é sempre mais complicada do que parece. Por isso, iremos começar do início.
Em 18 de outubro de 2023, o Departamento de Energia dos EUA emitiu um relatório intitulado "Urgent Needs to Reliably Facilitate the Energy Transition"., que mostrou a necessidade de substituição dos atributos fornecidos por usinas de energia tradicionais, em sua maioria usinas térmicas e hidrelétricas, que mantêm a rede estável, confiável e resiliente. Entre esses atributos estão: inércia, capacidade de potência reativa, reserva operacional, entre outros, considerando a rápida substituição destas fontes pelo despacho de usinas renováveis intermitentes (eólicas e solares, principalmente).
Estes são os serviços invisíveis que mantêm a rede funcionando. A rede inteira foi projetada há mais de 100 anos e construída assumindo a disponibilidade desses serviços. Eles estão sendo reduzidos com a evolução das fontes renováveis e o menor despacho das fontes tradicionais.
Embora a energia gerada pelas fontes tradicionais possa ser substituída por energia renovável variável, os serviços essenciais de confiabilidade da rede que oferecem não são fornecidos por energia solar, eólica ou baterias, e são incrivelmente difíceis de emular mesmo utilizando os novos equipamentos baseados em eletrônica de potência.
Sem inércia, a frequência da rede pode se tornar instável, causando danos aos equipamentos e até o colapso da rede. Futuramente, talvez novas tecnologias, possam preencher essa lacuna, porém ainda não estao disponíveis para utilização.
A rede elétrica conecta usinas de energia aos consumidores através de uma vasta rede de linhas de transmissão e distribuição, fornecendo eletricidade no instante em que é necessária. A rede foi projetada para equilibrar constantemente a oferta e demanda de energia, mantendo-a operando na mesma velocidade estável. No Brasil e em vários outros países, a velocidade da rede é de 60 Hz. A Europa e grande parte do resto do mundo operam em uma frequência de rede de 50 Hz.
Se houver, em qualquer instante, mais demanda por eletricidade do que oferta disponível, a frequência da rede cai. Se a oferta exceder a demanda, a frequência da rede aumenta.
Os geradores tradicionais que operam na rede (carvão, óleo, gás, nuclear e hidrelétrica) todos usam grandes máquinas, turbinas e geradores, que estão fisicamente girando na velocidade da rede. Se um gerador de reserva é ligado, a primeira coisa que faz é acelerar até a velocidade da rede e sincronizar com a velocidade e fase de cada outro gerador.
Cada usina de energia contém sua própria energia cinética que a mantém girando mesmo se a operação da planta for interrompida. A inércia síncrona em todas as usinas de energia conectadas mantém a rede girando a 60 Hz (ou 50 Hz). Pequenos desvios na carga são suavizados pela redução da velocidade do sistema. Pequenas mudanças na carga acontecem o tempo todo, como quando as temperaturas sobem e os aparelhos de ar-condicionado são ligados. A rede elétrica pode lidar com esses aumentos sem impacto significativo devido à inércia do sistema.
Porém, a transição energética e a necessidade de redução da emissão de gases do efeito estufa têm substituída a operação das fontes térmicas por energias renováveis limpas, mas variáveis, como solar e eólica. Estas são as opções mais rápidas de serem implementadas e de menor custo. Mesmo perante as hidrelétricas, as outras fontes renováveis, no Brasil, são utilizadas prioritariamente para o atendimento à demanda.
No entanto, como mencionado anteriormente, as usinas tradicionais fornecem mais serviços para a rede do que apenas energia, elas fornecem os chamados “serviços ancilares", que são como aqueles serviços necessários para manter operação confiável do sistema interligado." Isso inclui inércia síncrona, o atributo chave para determinar quão rápido a frequência da rede cai durante um evento de desequilíbrio.
A energia solar e outros recursos baseados em inversores não fornecem a inércia que ajuda a estabilizar a rede. Diferentemente das usinas tradicionais, a energia fotovoltaica solar gera energia como corrente contínua (DC) e requer um inversor para adicionar energia em corrente alternada (AC) à rede. Quase todos os inversores são "seguidores de rede", o que significa que eles produzem energia AC na frequência da rede à qual estão conectados. Se a frequência da rede estiver baixa, o vento, a energia solar e as baterias com inversores padrão seguidores de rede produzirão energia AC nessa frequência mais baixa da rede, sem fazer nada para corrigir o desvio de frequência baixa.
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Pior ainda, em áreas com restrições de transmissão onde o desequilíbrio de carga resulta em quedas de tensão (baixa tensão), os inversores seguidores de rede podem se desconectar da rede para se proteger, exacerbando uma situação já ruim. Isso pode resultar em apagões em cascata.
Não é por outra razão que em março de 2023, a Entidade de Gestão da Confiabilidade Elétrica da América do Norte (NERC) emitiu alertas sobre riscos associados a recursos baseados em inversores cuja recomendação é transcrita a seguir: “Esses recursos exibiram problemas de desempenho sistêmicos que podem levar a perdas inesperadas de geração, com o potencial de causar apagões generalizados. É fundamental que quaisquer deficiências de desempenho com recursos de geração existentes (e futuros) sejam analisadas de maneira eficaz e oportuna para manter a estabilidade e a confiabilidade da rede”.
De forma análoga baterias de armazenamento dependem de inversores e sofrem da mesma inadequação. Uma tecnologia mais recente, utilizada em pequenas sistemas isolados, conhecida como inversores "formadores de rede", pretende emular certos aspectos da inércia síncrona, reduzindo, assim, a deficiência das fontes variáveis renováveis.
Porém, o NERC em um estudo de setembro de 2023 alertou que que os efeitos dos inversores formadores de rede devem ser estudados antes de sua implementação.
Os impactos da ampla utilização da inversores formadores de rede podem ser numerosos, incluindo não apenas como os sistemas individuais se comportam em um nível local, mas também como vários sistemas interconectados entre si ao longo de longas linhas de transmissão interagem.
Mesmo assim, alguns especialistas alertam que renováveis intermitentes e baterias baseadas em inversores possam fornecer inércia sintética, porém não eliminaria a necessidade de inércia síncrona real.
O Reino Unido rapidamente descarbonizou sua rede, passando de 2,8% de energia limpa (ou seja, eólica, nuclear, solar e hidrelétrica) em 2000 para 48,5% em 2022. Deste montante, solar e eólica — que não fornecem inércia — subiram para 31,2%; fontes fornecedoras de inércia, forneceram 62,5%.
Em 2019, mais de um milhão de pessoas foram impactadas por um apagão causado pela queda do sistema de 50 Hz para 48,88 Hz. A inércia do sistema estava muito baixa para suavizar um parque eólico e uma usina a gás saindo de operação sequencialmente. Em 2020, em resposta a essa crise, o Operador do Sistema de Eletricidade da Rede Nacional contratou em 2020 a compra de 12.500 MW. s de inércia.
ERCOT, a rede isolada que abrange grande parte do Texas, aumentou sua mix de energia renovável de 3% em 2007 para 31% em 2023. Em 2007, 96% da geração fornecia inércia síncrona à rede, mas em 2023 esse número caiu para 61%. Embora seja conhecido por não ter um mercado de capacidade, a partir da Tempestade Uri, ERCOT está implementando políticas de aquisição fora do mercado para manter a confiabilidade da rede.
Na Espanha, a geração de energia eólica e solar cresceu de aproximadamente 2% em 2000 para 33% em 2021. Não surpreendentemente, um estudo identificou uma diminuição na inércia do sistema. Neste sentido, criou regulação que limitou a possibilidade de conexão da fonte solar fotovoltaica em alguns nós da rede devido à fraqueza local causada pela falta de recursos inerciais. Esses problemas não são isolados e estão se tornando mais prevalentes.
À medida que a penetração de renováveis aumenta, reguladores de rede, operadores de sistema de transmissão e formuladores de políticas precisarão ser proativos para garantir que a estabilidade da rede seja mantida.
No caso do Brasil, a solução adotada foi o estabelecimento dos leilões de capacidade. Este ano ocorrerá o segundo leilão onde as fontes térmicas e aumento de capacidade das hidrelétricas poderão ofertar capacidade adicional ao sistema.
Entretanto, uma pressão significativa vem sendo exercida para inclusão de baterias no certame. Porém na terra do espanto, o que assombra é que poucos indicam a necessidade de realizar estudos prévios para avaliar a adequacidade da solução. Parece que a introdução de inversores formadores de rede ou inversores seguidores de rede para aumento da confiabilidade fosse algo simples e trivial. Não é.