Professor de filosofia da Universidade de Harvard mostra em livro por que dinheiro e valor são coisas diferentes

André Marcel de Lima

Ao advento da economia de mercado deve ser tributado o maior salto nas condições de vida da humanidade durante a história recente, com incremento exponencial da produção de alimentos, desenvolvimento de medicamentos, produção em larga escala de bens de consumo e outras conquistas civilizatórias que dão suporte à elevação do bem estar, da saúde e da expectativa de vida.

Mas como nem tudo é perfeito é preciso estar atento: a transformação da bem sucedida e insubstituível economia de mercado em uma “sociedade de mercado” configura risco a ser identificado e evitado. Essa é a base conceitual do livro What Money Can t Buy: The Moral Limits of Markets (O que o dinheiro não pode comprar: os limites morais do mercado), de autoria do filósofo político norte-americano e professor da Universidade de Harvard, Michael Sandel.

A diferença aparentemente imperceptível entre economia de mercado e sociedade de mercado ganha contornos claros em Sandel. Ele ressalta que a economia de mercado é uma ferramenta, um meio valioso e eficiente de organizar a atividade produtiva na busca pela prosperidade. Já sociedade de mercado é definida como ambiente em que quase tudo está disponível para venda.

Sandel cita vários exemplos reais que convidam á reflexão sobre o mundo atual: um sentenciado à prisão em Santa Bárbara, Califórnia, pode comprar o direito de ocupar uma cela de qualidade superior, caso disponha de recursos e não goste da acomodação padrão; alguém que queira participar de um evento público concorrido em Washington, mas deseja evitar a espera em longas filas, pode recorrer a uma line standing company, empresa especializada em guardar lugar na fila. Segundo Sandel, tal empresa cuida da contratação de sem-teto para ficar na fila madrugada adentro.

Outro exemplo citado pelo filósofo de Harvard é o de uma instituição de caridade cuja especialidade é distribuir recursos financeiros para mulheres viciadas em drogas que decidam passar por esterilização, o que representa o ataque a um problema social por meio de incentivo econômico. E tem mais. Um país que resolva ir para uma guerra sem ter soldados em número suficiente pode recorrer a companhias privadas especializadas em subcontratar tais recursos. Sandel lembra que nas guerras do Iraque e do Afeganistão, tal contingente ultrapassou o efetivo de tropas americanas. 


Educação

Até que ponto é aceitável oferecer compensações financeiras para que alunos, sobretudo de áreas mais pobres, melhorem resultados na escola? Sandel conta que Chicago foi o foco de um programa piloto em que 20 escolas públicas ofereciam pagamentos por boas notas: 50 dólares por um A, 35 por um B, por exemplo. Num outro experimento realizado em Dallas, alunos secundaristas recebiam dois dólares por cada livro lido.

Vale oferecer dinheiro para estimular a leitura? Críticos consideram que a medida é negativa por estimular algo reconhecidamente benéfico por meio de incentivo inadequado. Nas palavras de Sandel, o dinheiro pode ensinar a lição errada. Afinal, o que acontecerá no médio ou longo prazo, quando o dinheiro deixar de ser oferecido? Paixão por leitura é típico exemplo de algo que não se pode comprar. Na realidade, o hábito da leitura é gratuito, mas dá mais trabalho para ser cultivado: é estimulado por meio de exemplos reais protagonizados pelos pais no ambiente doméstico e por bons professores nas escolas, de acordo com educadores.

Sandel conta que em Dallas o estímulo financeiro levou ao aumento no número de livros lidos. Porém livros mais curtos..E uma análise sobre a qualidade da leitura mereceria consideração adicional.

Para fortalecer a máxima de que nem tudo se resolve com recursos financeiros, Sandel expõe dois casos em diferentes partes do mundo. O primeiro ocorreu na Suíça, há alguns anos, quando autoridades do país buscavam solução para a localização de um equipamento de lixo nuclear -- algo que nenhuma comunidade deseja na proximidade, em função e riscos envolvidos na operação. Identificou-se local mais apropriado numa pequena cidade nas montanhas. Neste ponto, economistas pesquisadores ouviram os moradores e descobriram que 51% deles concordavam com a implantação.

Ao mudar o foco da pesquisa, perguntando se os habitantes estariam dispostos a receber oito mil dólares por ano como contrapartida, o percentual de aprovação caiu para 25%. Isso diante da mesma estimativa de risco,

Do ponto de vista padrão da análise econômica o resultado é um paradoxo. Os pesquisados explicaram que não queriam ser corrompidos ou receber propina. Estavam movidos por senso de responsabilidade cívica e aceitariam o risco pelo bem coletivo. Quando dinheiro foi oferecido, o que era uma questão de virtude cívica virou mera transação financeira e perdeu adesão” – explica o autor.

O outro exemplo vem de Israel, onde anualmente é promovido o Dia da Doação, em que crianças em idade escolar vão de porta a porta solicitando fundos para causas sociais. Economistas fizeram um experimento dividindo participantes em três grupos: o primeiro recebeu uma rápida explicação sobre a importância da causa. O segundo recebeu a mesma explicação, além de uma comissão de 1% sobre a arrecadação. O terceiro recebeu orientações e uma comissão ainda mais gorda, de 10%.

Qual grupo conseguiu levantar mais recursos? Uma nota de dois dólares para quem disser que foi o primeiro. “Oferecer dinheiro muitas vezes muda o caráter da atividade. O que era ação cívica e filantrópica foi redefinida como trato financeiro, um trabalho. Nem sempre dois incentivos trabalham melhor do que um. A transformação em transação pode erodir valores importantes como senso de responsabilidade e engajamento à causa” – explica Sandel.

Sandel narra caso pessoal para mostrar como a mentalidade mercadológica pode levar á perda de valores importantes. “Quando eu era criança, costumava ir ver jogos de beisebol. No estádio do Minnesota, em meados dos anos 60, havia pequena diferença de preço e padrão entre os assentos mais caros e mais baratos. Pessoas de diferentes classes sociais, chefes e empregados, sentavam-se praticamente lado a lado. Era uma experiência de mistura de classes. Todos esperavam o mesmo tempo nas filas, comiam os mesmos hot-dogs e, quando chovia, todos se molhavam”.

Prossegue Sandel. “Nos dias atuais, se você for à maioria dos estádios esportivos, notará que existem lugares especiais, os quais permitem aos mais ricos e afluentes se refugiar dos cidadãos comuns acomodados nos assentos inferiores. Não se trata mais daquela experiência de mistura de classes. Hoje nem todos esperam na mesma longa fila para ir ao banheiro. E quando chove nem todos se molham”.

O exemplo do estádio de beisebol é um reflexo do mundo real, de acordo com o expoente da filosofia de Harvard. “Cada vez mais, pessoas afluentes e de meios modestos vivem vidas separadas. Trabalhamos, compramos e nos divertimos em lugares diferentes. Nossas crianças vão para escolas diferentes. Não é um formato bom para ninguém” – considera.

“A democracia não requer igualdade perfeita, mas requer lugares e ocasiões em que homens e mulheres de diferentes origens se encontram e compartilham experiências no curso da vida diária. Queremos viver em uma sociedade onde tudo está disponível para ser adquirido? Ou existem certos bens que o dinheiro não pode comprar?”. 

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